Médicos não querem que sem-terra estudem medicina

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Foto: Gustavo Vara/Prefeitura de Pelotas

A proposta para se criar uma turma de medicina para os assentados da reforma agrária na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), uma antiga reivindicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vem provocando reações de contrariedade na classe médica.

A ideia ganhou o apoio da reitoria da universidade, que anunciou oficialmente estar discutindo o tema. Houve conversas preliminares com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a respeito do assunto. Para prosseguir, a proposta precisa agora ser aprovada pela Escola de Medicina e pelos conselhos da UFPel.

O objetivo é abrir uma turma exclusiva para assentados por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que completou 25 anos e já foi responsável por formar pessoas do campo em diversas instituições federais em cursos como direito, agronomia e veterinária, entre outros.

A abertura de uma turma de medicina para esse público seria uma decisão inédita.

“A iniciativa é uma resposta a uma preocupação social em relação à saúde e ao acesso a médicos nas áreas rurais e entre as comunidades agrárias. A partir de demanda apresentada pelos movimentos sociais, e entendendo legítima, resolvemos assumi-la e trabalhar para concretizá-la”, afirmou ao Valor Isabela Andrade, reitora da UFPel.

O Pronera é um exemplo de programa que voltou a ganhar ênfase no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após ser desidratado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)

Aliado de Lula, o MST virou um dos alvos do bolsonarismo e da bancada ruralista e continua na mira desse espectro político na atual legislatura no Congresso, que instalou neste ano uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar especificamente a organização.

Nos acordos firmados entre as universidades e o Pronera, que é coordenado pelo Incra, turmas especiais são selecionadas e formadas. A oferta não segue o ritmo regular das universidades, sendo decidida caso a caso. O vestibular, que não leva em consideração a prova do Enem, é feito só por aqueles que comprovam a situação de assentado.

Atualmente são 19 cursos superiores em andamento pelo programa. A estimativa do Incra é que, em 25 anos, cerca de 190 mil alunos já tenham ingressado em cursos técnicos, de graduação ou pós-graduação – a entidade não tem o número dos formados nas graduações, mas o MST estima em cerca de 9 mil.

As turmas seguem a chamada pedagogia da alternância: os alunos dos assentamentos contam com incentivo financeiro para passarem temporadas estudando em turnos da manhã, tarde e noite nas universidades, devendo cumprir pelo menos 70% da carga horária presencialmente.

O restante é cumprido nos próprios assentamentos. No curso de veterinária na UFPel para assentados, iniciado em 2011 e que está atualmente na quarta turma, o aproveitamento dos assentados recebeu a nota máxima (5) na avaliação do Ministério da Educação (MEC).

A iniciativa é uma resposta a uma preocupação social em relação à saúde nas áreas rurais”
— Isabela Andrade

“Somos contra qualquer flexibilidade para o ingresso de novos estudantes nos cursos de medicina. A proposta é indevida, cria uma desigualdade, pois não será o mesmo critério para todos os candidatos”, afirmou o médico Fernando Uberti, diretor-geral do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul (Simers), uma das entidades que se insurgiu contra a iniciativa.

Entre os representantes da classe médica há quem argumente que o modelo coloca em risco a qualidade da formação dos futuros médicos. “É um filtro falho e esse déficit na entrada vai se manifestar em questões incontornáveis”, ressaltou Uberti.

O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) protestou: “O Cremers repudia toda e qualquer forma de criação de novas vagas sem critérios, que tenha como objetivo atender determinados segmentos da sociedade e desrespeite a legislação vigente quanto ao sistema de processo seletivo.”

O conselho regional gaúcho recebeu o apoio do seu equivalente do Estado de São Paulo, que argumentou que a medida resultará “na formação de profissionais de diferentes níveis, muitos deles não capacitados integralmente para exercer a medicina”.

A incapacidade dos assentados foi citada explicitamente por um diretor do Simers, Luiz Alberto Grossi, em entrevista ao jornal “Diário Popular”, de Pelotas (RS). “Certamente vamos desqualificar a profissão concordando com isso. Não demora, os índios [sic] vão querer também fazer”, disse ele. Posteriormente, Grossi se retratou da declaração. O sindicato ressaltou que a declaração do diretor não reflete a sua posição.

Há indígenas que já cursam medicina em universidades federais. Desde 2019, a Universidade de Campinas (Unicamp) realiza em conjunto com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) um vestibular indígena, com vagas exclusivas – eles estudam juntos dos demais alunos. No ano passado, dois indígenas foram aprovados em medicina. Neste ano, ingressaram três (dois na Unicamp e um na UFSCar).

Somos contra a flexibilidade para o ingresso de novos estudantes. A proposta cria desigualdade”
— Fernando Uberti

“É um feudo da classe média alta. Eles não permitem que o pobre e o negro entrem”, disse o líder nacional do MST, João Pedro Stédile, ao podcast “Flow”, em junho, ao ser perguntado sobre a dificuldade de se abrir um curso de medicina para os assentados.

O Pronera foi criado no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). A política educacional para assentados, assim como a criação da pasta do Desenvolvimento Agrário, que ganhou status de ministério na mesma época, foi uma resposta do Estado à chacina de Eldorado dos Carajás (PA), em 1996, que deixou 21 mortos.

“No início do curso, houve certa resistência da comunidade acadêmica, mas depois a nossa própria turma foi quebrando o tabu”, conta o veterinário Afonso Campos Souza, 47 anos, que se formou na primeira turma de veterinária da Universidade de Pelotas. Ele trabalha numa cooperativa de leite do MST, cuidando das vacas leiteiras. “Antes havia um déficit de profissionais nos assentamentos”, lembra Souza.

Durante os governos do PT, com Lula (2003-10) nos seus primeiros dois mandatos, e depois com Dilma Rousseff (2011-16), o Pronera recebeu o maior volume de recursos de sua história, mas não ficou imune aos cortes. No fim do governo Dilma, o orçamento anual chegava a R$ 30 milhões (já tinha sido o dobro desse valor anteriormente).

No governo Bolsonaro, o programa foi rebaixado de status e o orçamento discricionário de 2021 chegou a R$ 21 mil. Fabrício Dias, que responde pela Direção de Desenvolvimento e Educação nos Assentamentos do Incra e é o atual responsável pelo Pronera, conta que o programa só continuou operando na gestão passada graças às emendas destinadas por parlamentares de esquerda.

Sobre a criação da turma especial de medicina em Pelotas, há a possibilidade de judicialização, como aconteceu em outros cursos do Pronera. A pesquisadora Clarice Santos, professora de licenciatura em educação do campo na Universidade de Brasília (UnB), coordenou o programa entre 2007 e 2014 e lembra de uma disputa na Justiça contra o curso de direito para assentados na Universidade Federal de Goiás (UFG), no fim dos anos 2000.

O Ministério Público Federal em Goiás conseguiu suspender o curso ao entrar com uma ação, acatada em primeira instância, com o argumento de que o objetivo do Pronera é o de fortalecer a educação nos assentamentos com conhecimentos específicos do campo, o que não era o caso do direito. A decisão foi revertida posteriormente e a aula inaugural do curso foi proferida pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau.

Uberti, do sindicato dos médicos gaúchos, espera que a criação da turma especial em Pelotas seja vetada pela própria Faculdade de Medicina, que ainda não se pronunciou. Ele diz que conselhos da universidade estão se manifestando contra a nova turma, o que não foi confirmado pela reitoria.

Para se abrir uma nova turma, a UFPel reconhece que terá que ampliar a estrutura do curso de medicina, esperando para isso o apoio do governo federal. “O que posso confirmar é que estão ocorrendo discussões internas e emergindo posicionamentos diversos em relação à criação dessa turma exclusiva, sendo a grande maioria pautados por preocupações de ordem estrutural”, respondeu Isabela Andrade, reitora da universidade.

Valor Econômico