PF e Exército disputam poder no governo Lula
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O general Marcos Amaro é um militar de voz serena, fala de maneira pausada e parece sempre disposto a contemporizar — tarefa, aliás, à qual ele se dedica desde que assumiu o comando do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, em maio, ainda no rastro da crise provocada pelos ataques do dia 8 de janeiro. Esse traço de personalidade do ministro tem sido fundamental para evitar novas turbulências num ambiente ainda intoxicado pela suspeita de que a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal foi o estopim de uma fracassada tentativa de golpe que teria contado com a colaboração do Exército. O general discorda frontalmente dessa afirmação. Embora reconheça que alguns colegas de farda, especialmente os da reserva, alimentavam esse desejo, ressalta que essas pessoas nunca tiveram respaldo nas Forças Armadas. E concluir que houve uma tentativa de golpe sem apoio das Forças Armadas, segundo ele, é no mínimo uma aberração.
O gabinete do ministro-chefe do GSI fica no 2º andar do Planalto, há uns 500 metros do Ministério da Justiça, onde a convicção é outra. Em uma entrevista a VEJA no aniversário de seis meses dos ataques, Flávio Dino, o ministro, reafirmou não ter dúvida de que os eventos do dia 8 de janeiro foram, sim, parte de um plano golpista que contou com o apoio do Exército, instituição, segundo ele, “90% bolsonarista”. A segurança do Palácio é de responsabilidade dos militares do GSI. A facilidade com que os manifestantes entraram e depredaram tudo sem enfrentar resistência seria apenas uma das evidências dessa suposta colaboração. A Polícia Federal investiga outras, o que tem acirrado um embate que começou antes mesmo da posse do presidente Lula, atingiu níveis críticos após os atos antidemocráticos, parecia ter arrefecido um pouco nos meses seguintes, mas, por conta de alguns acontecimentos recentes, se transformou num cabo de guerra entre instituições.
O estranhamento teve início com a disputa sobre o comando da segurança de Lula, do vice e de seus respectivos familiares. Desde a transição, uma ala da Polícia Federal próxima ao PT falava sobre uma suposta contaminação do Gabinete de Segurança. Eles haviam monitorado um grupo no WhatsApp do qual participavam militares lotados no GSI, e constataram que eles, além de defenderem um golpe nas trocas de mensagens, batiam ponto no acampamento montado em frente ao QG do Exército. “Até as paredes sabiam que tinha golpistas e pilantras infiltrados ali”, diz um policial. O GSI, por sua vez, argumentava que a proteção presidencial era uma prerrogativa do órgão havia mais de oito décadas e nunca houve nenhuma intercorrência. Aliás, para alfinetar, lembrava que o único ponto fora da curva até hoje foi a facada no então candidato Jair Bolsonaro, na época escoltado pela PF. Um dos primeiros atos de Lula ao assumir o governo foi justamente no sentido de quebrar a tradição e inaugurar um novo modelo, dando à Polícia Federal a função de cuidar da proteção presidencial. A medida vigorou até o fim de junho, quando o presidente, numa tentativa de distensionar a relação com os militares, devolveu ao GSI a coordenação da segurança, que passaria a ser feita em parceria com a PF. Não deu certo. A Polícia Federal se recusa a ter qualquer tipo de subordinação aos militares. Para complicar, a primeira-dama, Rosângela da Silva, solicitou que a sua segurança imediata fosse feita apenas por policiais federais. A decisão criou uma inusitada situação durante as agendas oficiais e cotidianas. Fora do Palácio da Alvorada, Janja se locomove no veículo oficial ao lado do marido, sob a guarda de militares, mas acompanhado também por uma escolta da PF que segue ao lado do comboio. Um desperdício de tempo, dinheiro e de agentes públicos.
A Polícia Federal é comandada por Andrei Rodrigues, que atuou como chefe da segurança pessoal de Lula durante a campanha eleitoral. Mesmo no mais alto posto da instituição, o diretor-geral até hoje faz as vezes de guarda-costas e costuma estar ao lado do presidente em todas as viagens internacionais. Nos bastidores, ele tenta encontrar alguma solução para retomar o controle total sobre a segurança presidencial, embora, dentro do GSI, a situação já seja tratada como definitiva. Chefe de Andrei, o Ministro da Justiça dá respaldo à atuação do seu subordinado. Abrindo outra frente de atrito, Dino chegou a entregar à Presidência e à Casa Civil uma proposta de criação de uma Guarda Nacional no país, modelo que une as forças de segurança e, na prática, esvazia a atuação do Exército. Sob reserva, um general ouvido por VEJA ressalta que está evidente que o objetivo dessas proposições é criar constrangimento aos militares. Segundo ele, algumas operações da polícia também teriam como objetivo sabotar as relações entre o presidente e os militares. Um dos casos citados envolve a prisão de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro. A operação ocorreu dentro de uma área militar, não houve aviso prévio, como de praxe, e foi desencadeada num dia em que estava prevista uma visita de Lula ao Quartel-General do Exército, ato anunciado como uma tentativa de reaproximação depois do 8 de Janeiro. “A impressão é que quiseram minar esse gesto do presidente”, diz o general. Duas semanas antes, outro episódio já havia provocado a mesma suspeita. Lula havia confirmado sua participação na comemoração do Dia do Exército. A solenidade, porém, acabou ofuscada com o vazamento das imagens do ex-chefe do GSI, general Gonçalves Dias, dentro do Palácio do Planalto durante a invasão. “Ninguém deu o mínimo destaque para o fato de o presidente ter ido ao Exército e que foi um festaço”, lamentou o ministro da Defesa, José Múcio, durante uma conversa com assessores enquanto acompanhava o noticiário. O episódio levou à demissão de G. Dias, que acabou substituído pelo general Marcos Amaro.
Em julho, o ministro da Defesa organizou um almoço com Dino, Andrei Rodrigues e o comandante do Exército, Tomás Paiva, em busca de colocar todos frente a frente e aparar as arestas, mas o clima voltou a esquentar com a divulgação de um inquérito que investigou a atuação de oficiais e soldados durante a invasão do Planalto. A conclusão foi de que houve uma série de erros do GSI, mas não a participação ou conivência de algum militar. Ato contínuo, a PF fez circular que conduz um inquérito que aponta na direção contrária. Na semana passada, no Pará, um homem foi preso após dizer num supermercado que daria um tiro em Lula. Menos de 24 horas depois, a Polícia Federal fez buscas na casa de um vigilante que havia ameaçado o petista em uma rede social. O GSI foi informado dos dois casos. Lula exortou a ação: “Nunca mais repitam a tentativa de golpe que quiseram dar no dia 8 de janeiro, porque mais gente será presa. Mais gente pagará o preço”. A fala do presidente confundiu certos ouvintes. Uns interpretaram como um duro recado ao Exército, outros como um elogio explícito ao trabalho da Polícia Federal e um terceiro grupo entendeu as duas coisas. Não há bandeira branca à vista.