Política tolera e até incentiva violência policial

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Foto: Mauro Pimentel/AFP

Em dezembro passado, um homem de 26 anos em aparente surto começou a ameaçar com uma faca quem passava numa rua de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro policiais vieram conter o sujeito. Em poucos minutos, ele estava morto com 13 balas no corpo.

A mãe do rapaz, humilde, demorou a localizar o cadáver e mais ainda para chegar à Defensoria Pública do estado, que em abril pediu acesso às imagens da ação. Embora a lei determine que, nos casos de morte em ocorrência policial, as imagens têm que ser preservadas por 12 meses, a PM respondeu que os vídeos já haviam sido descartados, porque não foram considerados evidência de crime.

O caso não é isolado. No Rio de Janeiro, tem sido a regra. O estado foi um dos primeiros a instalar câmeras nos uniformes da PM. Mas, até agora, elas ainda não permitiram compreender como e por que a polícia fluminense é a terceira mais letal do Brasil. A culpa, obviamente, não é das câmeras.

De acordo com um documento entregue na semana passada pela Defensoria Pública do Rio ao ministro do Supremo Edson Fachin, dos 90 pedidos de acesso a imagens de câmeras de policiais citados em ocorrências de abusos, tortura e morte, apenas oito foram atendidos pela PM entre abril e julho deste ano.

Mesmo assim, no material fornecido havia vídeos fragmentados, exibindo o que houve antes e depois da ação policial — nunca durante —, cenas do interior de viaturas e de um banheiro. Outros 51 pedidos não foram respondidos. Em 24 casos, a PM exigiu mais informações. Em sete, admitiu não ter imagem alguma.

O uso das câmeras como política pública já se mostrou eficaz no exterior e no Brasil. Em São Paulo, os batalhões com câmeras registraram queda de 76,2% na letalidade dos PMs em serviço entre 2019 e 2022. Nas outras tropas, as mortes diminuíram 33,3%. O número de policiais mortos também caiu, de 18 em 2020 para seis em 2022.

Para a política funcionar, porém, é preciso que todos saibam que é para valer. Defensores públicos de São Paulo me contaram que lá a regra é fornecer rapidamente as imagens — de todo o turno do PM, não só do momento da ocorrência.

Isso começou a mudar nas últimas semanas, quando a Rota desencadeou uma operação em resposta ao assassinato de um PM numa favela do Guarujá — a Escudo, que já fez 23 vítimas fatais. O governo diz que a ação é necessária para conter o tráfico de drogas e o crime organizado na Baixada Santista.

Mas a Defensoria ainda não obteve acesso às imagens das mortes, e o Ministério Público afirma ter recebido apenas parte dos vídeos, porque alguns policiais não usavam câmeras.

Como se não bastasse, no último dia 18, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) remanejou R$ 11 milhões da compra de câmeras para outros gastos de policiamento ostensivo. Tudo isso despertou o temor de retrocesso numa política que vinha sendo copiada, embora lentamente.

O consenso entre os especialistas é que, além de reduzir a letalidade, as câmeras também ajudam a criar uma cultura de mais transparência. É natural, portanto, que haja resistência na corporação, tradicionalmente avessa ao controle externo.

Os governadores também evitam mexer no vespeiro. No discurso de posse, o fluminense Cláudio Castro (PL) afirmou que lutaria “até o fim” contra as câmeras nas tropas de elite. Em junho, porém, Fachin determinou que não houvesse exceções, e o governo do Rio começou a obedecer a ele.

Ainda assim, quando o relatório da Defensoria veio a público, Castro reclamou de “falta de diálogo” com a PM e acusou os defensores de fazer “gracinha”.

A resistência não se dá apenas entre bolsonaristas. Na Bahia, que apresenta a maior letalidade policial do país depois do Amapá, os petistas Rui Costa e Jerônimo Rodrigues prometeram instalar as câmeras desde 2020, mas as tratativas para a compra se arrastam desde então.

No governo Lula, que as incluiu como prioridade no relatório de transição, há apenas um projeto-piloto para distribuir os equipamentos no município baiano de Lauro de Freitas.

Na semana em que Lula decidiu atacar um dos maiores focos de golpismo bolsonarista e enviar ao Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional proibindo os militares de atuar na política, é difícil entender a leniência com as polícias.

A esta altura, já está evidente que a falta de uma política de segurança pública consistente nos governos petistas ajudou a disseminar bolsonarismo nas polícias e a empurrar o eleitorado das periferias para a órbita da direita radical. O risco de continuar negando a enfrentar esse problema é ser obrigado a ver imagens ainda mais letais que as de hoje — só que na arena política.

O Globo