Família que Exército fuzilou será indenizada em R$ 2 mi

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Foto: Fabio Teixeira/AP

O governo federal fechou acordo para indenizar a família do músico Evaldo Rosa dos Santos, fuzilado por militares do Exército em 7 de abril de 2019. Ela vai dividir R$ 2 milhões e a esposa e o filho receberão pensão de 1,5 salário mínimo cada. O caso ilustra o que é o terrorismo de Estado e lembra que não é só golpe que acontece quando as Forças Armadas se metem onde não deveriam. A história é vergonhosa. Evaldo foi executado diante de sua família após o carro em que estavam ser alvo de 62 dos 257 tiros (!!!) disparados por militares, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro. Sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro assistiram à sua morte. Todos iam a um chá de bebê. Se deduziu qual a cor da pele de Evaldo, o que serviu como gatilho para a ação, parabéns. Você tem direito ao seu diploma de bacharelado em Brasil.

O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, que passava por lá, foi atingido quando tentava ajudar a família do músico que estava no veículo (e, por sorte, sobreviveu). Ele faleceu 11 dias depois. No julgamento, a defesa dos militares tentou, de forma covarde, culpar alguém que morreu como herói, afirmando que o catador pertencia ao tráfico e era o responsável pela morte de Evaldo. Em abril deste ano, a Advocacia-Geral da União (AGU), que vem trabalhando dobrado para limpar a sujeira deixada pela gestão de Jair Bolsonaro, já havia firmado um acordo com a família de Luciano Macedo, prevendo o pagamento de R$ 841 mil à família. O Tribunal de Justiça Militar condenou, em outubro de 2021, oito militares do Exército pela execução de ambos. Quem puxou o gatilho recebeu penas entre 28 e 31 anos, e à sentença coube recurso. Mas apesar da indenização e da condenação terem efeitos de dissuasão junto a quem está no chão, os idealizadores e incentivadores dessa política seguem livres e vão ainda causar muitos danos. Lembrando que quem pagará a (justa) indenização será o contribuinte. A política informal de execução de pobres e negros nas periferias não é uma novidade. Eles têm sido abatidos cotidianamente pelas mãos do tráfico, de milicianos, de policiais e também de militares.

Em abril de 2019, o diferencial era a tempestade perfeita criada por um governador e um presidente da República que elogiavam execuções cometidas por agentes de Estado – o que era recebido como apoio explícito. Somado a isso, o rescaldo da intervenção militar na área de segurança pública do Rio de Janeiro, ocorrida no ano anterior e que facilitaria operações de GLO. Não era a mão de mandatários e dos comandantes militares que segurava os fuzis naquele dia e em outros semelhantes. Mas foi a política de promover, premiar e justificar esse tipo de ação pelas mãos do poder público, e as políticas encabeçadas por eles, que ajudaram a tornar a execução de pobres e pretos algo banal sob a justificativa do bem maior. Nesse ponto de vista, mortes como a de Evaldo e Luciano foram encaradas como “danos colaterais” aceitáveis no caminho de um Estado seguro. O problema é que um Estado que mata indiscriminadamente não é seguro, mas autoritário e ditatorial. Nele, qualquer um com a cor de pele e a classe social “erradas” podem se tornar suas vítimas. E ainda terem que pedir desculpas depois de mortos, como queria a defesa dos executores. Como sempre digo aqui, não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem, na (falta de) formação profissional que tiveram, na colocação para funções para os quais não foram preparados, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Tudo com a anuência de uma parte da população, que não se indigna diante da morte de negros e pobres e periféricos. Indigna-se com quem diz que racismo existe. E, para piorar, Evaldo e Luciano foram fuzilados uma segunda vez nas redes sociais após o crime através de postagens preconceituosas e violentas que dizem que “se levaram bala é porque estavam em lugar que gente honesta não frequenta”. Por exemplo: “Se você escolher falar merda e defender bandido é escolha sua. Seu merda! Se for errado paga com a vida! Mexeu com o Exército, assinou sua sentença! Sua família vai pagar!” Foi assim que um perfil nas redes sociais ameaçou o jornalista que havia feito reportagem sobre a execução para o programa “Fantástico”, da TV Globo.

A punição do Estado e dos envolvidos na morte de ambos abre a possibilidade para discutirmos novamente se queremos as Forças Armadas, que são treinadas para a guerra, atuando em algo alheio à sua missão. Isso vale para a segurança pública, mas também monitoramento de urnas eletrônicas – como o papel ridículo que elas se prestaram ao tentar embasar o discurso golpista de Bolsonaro nessa área. Militares que acham que podem sair atirando em uma comunidade são fruto da mesma mutação democrática que leva militares a conspirarem, incitarem, apoiarem, participarem ou serem coniventes com os atos golpistas de 8 de janeiro. Se ficarmos só no pagamento de indenização e na punição dos bagres, sem rediscutir os limites de atuação dos militares, o episódio sairá barato para o Exército. Policiais e militares não atiram em famílias de brancos ricos impunemente no Leblon ou nos Jardins, apesar de ser nos bairros ricos das grandes cidades a morada de grandes criminosos, tanto do tráfico e da milícia quanto do poder econômico. Por que isso ocorre com negros pobres nos Extremos da Zona Norte e Oeste do Rio ou nos Extremos da Zona Leste e Sul de São Paulo? Se você já tinha deduzido que é porque a vida, nesses locais, vale muito menos, parabéns de novo. Você também merece um certificado de pós-graduação em Brasil.

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