Lula vive relação de morde e assopra com militares

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Há muito a esclarecer sobre o que se passou nos bastidores do governo e da caserna nos dias anteriores à eleição de 2022 e logo depois da vitória de Lula. Embora não haja dúvida de que o Palácio do Planalto foi cenário para a armação de um golpe, nem da leniência das Forças Armadas com os acampamentos que deram guarida a hordas de golpistas, sabe-se ainda pouco sobre as circunstâncias em que tudo aconteceu e sobre o papel de cada oficial na trama.

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Mas a história dos fatos que levaram ao 8 de Janeiro não é a única coisa nebulosa em Brasília. À medida que as investigações da Polícia Federal e da CPI para investigar os atos golpistas avançam, fica mais evidente a falta de um norte do governo em relação aos militares.

A ala determinada a sufocar o bolsonarismo e a enquadrar os militares foi turbinada pela delação de Mauro Cid, que botou fogo no ambiente político e colocou a Polícia Federal no encalço dos comandantes militares de Jair Bolsonaro, com o aval de Alexandre de Moraes.

No Congresso, a base lulista pressiona pela convocação de generais e comandantes para depor na CPI do 8 de janeiro, enquanto deputados do PT propõem mudar a redação do famigerado artigo 142 da Constituição e deixar claro que não, as Forças Armadas não constituem um poder moderador na República, como gostaria o bolsonarismo.

Na Esplanada dos Ministérios, as pastas dos Direitos Humanos e da Casa Civil trabalham para recriar a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e planejam uma cerimônia oficial no próximo 25 de outubro, quando se completam 48 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog numa prisão da ditadura.

Em frente oposta, o ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante do Exército, Tomás Paiva, costuraram um acordo para reduzir ao máximo o número de oficiais estrelados na CPI e, por ora, mesmo depois da delação de Mauro Cid, estão garantindo que nenhum ex-comandante — nem mesmo o da Marinha, acusado de ter dado apoio à tese do golpe — seja obrigado a encarar os holofotes.

Oficialmente, Múcio diz que “não é contra” a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas nos bastidores se confessa incomodado e torce para que a iniciativa fique para as calendas. Líderes lulistas no Congresso vêm convencendo seus pares a deixar o artigo 142 de lado e a aprovar só o texto que obriga todo militar que disputa eleição a ir para a reserva — com que os comandantes concordam.

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Além disso, o governo deu às Forças Armadas assento VIP na fila dos investimentos. Nenhum outro setor isolado receberá tantos recursos do novo Plano de Aceleração Econômica (PAC) quanto a Defesa, para a qual estão previstos R$ 53 bilhões ao longo de quatro anos.

Na última terça-feira, ao mesmo tempo que a CPI ouvia o general Augusto Heleno em Brasília, no Rio, o BNDES de Aloizio Mercadante fazia um seminário para discutir como aplicar essa montanha de dinheiro e desenvolver a indústria de Defesa, tratada como grande promessa para o desenvolvimento nacional.

Aparentemente, Lula usa para a questão militar seu clássico método de colocar todos os atores para disputar espaço na arena e só depois definir o rumo das coisas.

Ele não fará nada para frear a investigação da PF que pode, no limite, levar à prisão de Jair Bolsonaro, nem se desgastará para conter os petistas neste momento de catarse contra os golpistas — desde, é claro, que Múcio sempre esteja lá para “pacificar” tudo. Também não se esfalfará para fardados pela ideologia — mas coloca a máquina pública para atraí-los com dinheiro e equipamentos.

No fundo, o plano é parecido com o que ele já executou em seus primeiros mandatos, conquistando os militares com rapapés e muito investimento. Naquela época, funcionou, mas os tempos são outros. Desde então já houve uma Dilma Rousseff e um Bolsonaro, e o cenário político mudou completamente.

Muitos militares não se esquecem de iniciativas como a Comissão da Verdade, até hoje vista como instrumento de revanchismo e perseguição, e encaram os movimentos dos petistas como um revival daquela “caça às bruxas”. Múcio, em seu esforço de pacificação, tem procurado afagá-los, chamando as Forças Armadas de parceiras e dizendo que “são parte do governo” — e não tropas a serviço de um comando civil.

Por ora, tudo o que o modus operandi de Lula produziu foi um frágil equilíbrio baseado em opções conhecidas, mas não necessariamente adequadas aos novos tempos. Em algum momento, o presidente terá de sair da encruzilhada e escolher um caminho. Só então se saberá se o trajeto foi bem pavimentado — ou se ficou cheio de minas terrestres que a confusão do momento não permitiu desarmar.

O Globo