Mundo desenvolvido vê palhaçada sobre aborto no Brasil

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O voto dado pela ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto no Brasil elevou o debate sobre o tema a um patamar inédito nos campos jurídico, político e social e pode ter o condão de voltar os olhos do mundo para o país, afirmam acadêmicas que se dedicam ao assunto.

A forma como a presidente da corte se posicionou dá, ainda, a oportunidade de seu sucessor, Luís Roberto Barroso, protagonizar um julgamento tido como histórico num momento em que cortes constitucionais do Sul Global têm se debruçado sobre o tema. Barroso assume a presidência do Supremo na quinta (28).

A presidente do STF, ministra Rosa Weber, na votação do marco temporal – Gabriela Biló 21.set.23/Folhapress
“Esse voto contribui para que a gente expanda essa conversa, para que ela se dê numa perspectiva que reforce noções de direitos fundamentais e de proteção aos direitos das mulheres”, afirma a pesquisadora e professora associada do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília) Flávia Biroli.

Para a cientista política, a ministra foi feliz ao usar argumentos que mostrariam como a penalização do aborto está em descompasso com as premissas da Constituição de 1988.

Weber rememorou que a criminalização da prática data de 1940 e de um contexto em que a cidadania das mulheres era exercida de forma deficitária. E partiu da premissa de que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos fundamentais, destaca a professora da UnB.

“Um voto desses dá argumentos para quem quer entrar no bonde”, diz Biroli, sugerindo que a forma como o debate foi proposto pela ministra pode fazer com que outras pessoas possam aderir à demanda pela descriminalização da interrupção da gestação até a 12ª semana.

De acordo com a cientista política, estudos indicam que a sociedade brasileira está aberta a repensar suas posições sobro o procedimento, apesar do ruidoso ativismo antiaborto. “A realidade é muito mais complexa e muito menos estanque do que esses ativistas querem fazer crer”, afirma.

A antropóloga Debora Diniz, professora de direito da UnB e pesquisadora visitante da Universidade Brown, nos EUA, também tece elogios à argumentação esmiuçada em 129 páginas pela presidente do Supremo.

“Foi um voto muito pensado, estudado em cada palavra, em cada argumento. Um voto com delicadeza e, ao mesmo tempo, firmeza, mas também com profunda humildade. Não foi um texto só para iniciados [em estudos do direito]”, afirma a antropóloga.

O termo “justiça social reprodutiva”, usado por Weber em seu voto, é destacado pelas especialistas ouvidas pela coluna. De acordo com Diniz, a magistrada pode ter inaugurado um conceito no âmbito do direito internacional e no campo da teoria de gênero e feminista ao combinar a defesa da justiça social com a defesa da justiça reprodutiva.

A expressão, afirmam as acadêmicas, ganha relevância ao extrapolar o aborto, em si, e contemplar uma série de necessidades e questões das mulheres. Ela inclui, por exemplo, o dado de que mulheres negras são as mais expostas aos riscos decorrentes da criminalização do procedimento —como o de ir a óbito.

“Ao revisitar a jurisprudência do STF em matérias sobre direitos das mulheres, como o direito ao voto, ao trabalho, à amamentação, a uma vida livre de violência, a ministra olha a amplitude e diz: essa corte já enfrentou [temas caros para os] direitos da mulheres como direitos humanos e fundamentais. Não vamos temer a questão do aborto como questão sensível”, afirma Diniz.

Uma das responsáveis pela Pesquisa Nacional de Aborto, que foi realizada no Brasil nos anos de 2016, 2019 e 2021, a antropóloga ainda afirma que a autoria feminina do voto dado na sexta-feira (22) é evidente, uma vez que a ministra teria se preocupado com a vida das mulheres de forma integral.

A professora de direito penal da USP (Universidade de São Paulo) Mariângela Gama de Magalhães Gomes diz ver um grande simbolismo feminino não só no voto, mas também no esforço de Weber de pautar o julgamento antes de sua aposentadoria.

“Não dá para dizer categoricamente que um homem não teria essa preocupação, embora seja verdade que precisou de uma mulher para colocar em votação. Mas também não dá para dizer que qualquer mulher que fosse presidente do STF igualmente faria esse esforço”, pondera.

As acadêmicas ouvidas pela coluna avaliam positivamente o pedido do ministro Barroso para que o tema seja discutido em plenário —embora, com isso, o julgamento tenha sido postergado. “Esse é o tipo de coisa que não se faz de uma hora para outra”, diz Biroli.

com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH

Folha de SP