Nota do Exército gerou o 8 de janeiro

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Foto: Divulgação/Ministério da Defesa

Em 10 de novembro de 2022 em Brasília, um general olhou pela janela do segundo andar do Forte Caxias, o Quartel-General do Exército, e viu a multidão de pessoas e tendas na praça dos Cristais.

Horas antes ele havia recebido uma nota, assinada pelos comandantes Freire Gomes (Exército), Almir Garnier (Marinha) e Baptista Junior (Aeronáutica), que seria publicada no dia seguinte.

Freire Gomes, de forma discreta, havia enviado o texto previamente para poucos colegas de farda. Ele não tinha avisado ao Alto Comando que a nota seria publicada e omitira a informação do encontro que teve naquele dia com todos os generais do Exército.

O dia da publicação da nota seria 11 de novembro —data em que, em 1955, o general Henrique Lott promoveu um golpe preventivo e garantiu a posse de Juscelino Kubitschek. Segundo seis oficiais-generais ouvidos pela Folha, a escolha da data foi uma coincidência.

O militar que recebeu o texto de forma antecipada disse a Freire Gomes que o tom parecia adequado e não sugeriu alterações. Olhando pela janela, porém, ele avaliou que a nota tinha um teor excessivamente bolsonarista e poderia incendiar o acampamento, de acordo com seu próprio relato à Folha.

A construção da nota começou uma semana antes, quando os comandantes participaram de reuniões fora da agenda com Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada.

As conversas expressaram preocupações com o bloqueio de estradas, tiveram críticas ao Judiciário e defenderam a legitimidade das manifestações em frente aos quartéis que pediam um golpe para impedir a posse do então presidente eleito Lula (PT).

Na visão dos chefes militares, os manifestantes não se sentiam seguros para protestar em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal) nem viam efetividade em cobrar respostas do Congresso diante do que consideravam abusos de ministros togados. O alvo deles também era o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Por isso, na interpretação deles, os bolsonaristas decidiram recorrer aos quartéis.

A nota, com o título “às instituições e ao povo brasileiro”, foi lida por três vezes na manhã de 11 de novembro no acampamento do QG do Exército, em Brasília. As leituras eram intercaladas com a “Canção do Exército”.

O texto dizia que as Forças Armadas, “sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”, têm “compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro, com a democracia e com a harmonia política”.

Com recados ao Judiciário, os comandantes falavam em condenar ações de indivíduos que “alimentem a desarmonia na sociedade” e que o país possuía instrumentos legais para solucionar “possíveis controvérsias”.

“Reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua liberdade.”

Os bolsonaristas acampados entenderam a nota como apoio dos militares aos protestos nos quartéis. “Forças Armadas, comunismo não. Forças Armadas, salvem a nação”, cantavam na manhã de 11 de novembro.

Os ânimos dos radicais se alteraram durante os dois meses em que estiveram acampados em súplica por um golpe militar. A segunda semana de novembro, quando houve recorde de público mesmo sob chuva, foi marcada pela euforia com a nota dos comandantes das Forças Armadas.

Com o passar do tempo, porém, a cúpula das três Forças decidiu se manter calada. O silêncio abriu espaço para um sem-número de teorias serem levantadas pelos bolsonaristas —a principal, que circulava pelas redes, dava conta de que cinco generais do Alto Comando do Exército seriam comunistas.

Apelidados de “melancias”, por serem vistos nesses grupos bolsonaristas como “verdes por fora e vermelhos por dentro”, os generais Richard Nunes, Amin Naves, Tomás Paiva, André Luiz Novais e Valério Stumpf viraram alvo dos radicais acampados no Setor Militar Urbano, em Brasília.

“[Eles] querem que Lula assuma, já se acertaram com ele e o TOMAZ é o que está querendo ser o comandante do exército do Lula. Repasse para ficarem famosos”, dizia uma das mensagens divulgadas pelo WhatsApp.

As acusações irritaram a cúpula do Exército. Os generais citados conversaram com o então comandante Freire Gomes na segunda quinzena de novembro e contaram que, em alguns casos, filhos dos militares passaram a ser ofendidos.

Freire Gomes decidiu enviar um comunicado à Força.

“Tais publicações têm se caracterizado pela maliciosa e criminosa tentativa de atingir a honra pessoal de militares com mais de 40 anos de serviços prestados ao Brasil, bem como de macular a coesão inabalável do Exército de Caxias”, diz trecho do informe interno.

Com o florescer dos acampamentos, generais do Exército viram-se obrigados a discutir uma situação considerada incômoda.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, usou constantemente a academia do Comando Militar do Planalto para fazer musculação durante três anos.

O ministro fazia sucesso no local. Militares ouvidos pela Folha contam, surpresos, que ele prendia pesos nas pernas quando realizava a barra, exercício que consiste em subir e descer por uma estrutura metálica somente com a força dos braços.

Em novembro, com a insatisfação dos militares com Moraes e o estabelecimento dos acampamentos na frente do local, generais decidiram interromper a rotina do ministro. Por celular, eles informaram a Moraes que a academia passaria por reformas e, portanto, não seria possível utilizar o espaço durante algumas semanas.

O ministro entendeu o recado e procurou outra academia discreta para realizar os exercícios físicos. Só voltou a ser convidado para usar as instalações do Comando Militar do Planalto pelo atual comandante do Exército, Tomás Paiva, neste ano.

A atuação dos militares nas semanas que sucederam a derrota de Bolsonaro para Lula seguem sob escrutínio e entraram na mira de investigadores da Polícia Federal.

A revelação mais recente que colocou novamente as Forças Armadas sob pressão foi a do tenente-coronel Mauro Cid, que em depoimento de delação premiada disse que Bolsonaro chegou a consultar militares de alta patente sobre um possível golpe de Estado.

Ainda segundo o relato de Cid, revelado pelo UOL e pelo jornal O Globo e confirmado pela Folha, o então comandante da Marinha, Almir Garnier, se manifestou favoravelmente ao plano golpista durante as conversas de bastidores. Cid afirmou ainda aos investigadores que não houve adesão do Alto Comando das Forças Armadas.

Folha