Primeiro condenado por 8/1 era terraplanista

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Foto: Reprodução

Aécio Lúcio Costa Pereira era um funcionário exemplar e querido no ambiente profissional, relatam colegas que trabalharam diretamente com ele nos últimos anos na Sabesp, a companhia de saneamento do estado de São Paulo. Um mergulho profundo num mundo conspiratório o levou à atual desgraça, avaliam esses mesmos companheiros.

O primeiro condenado no julgamento pelos ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro, realizado no STF (Supremo Tribunal Federal) na semana passada, era técnico em sistemas de saneamento no setor de operação de esgotos do polo de manutenção da Sabesp em Diadema, na Grande São Paulo. Realizava principalmente serviços de suporte em TI, mas, segundo colegas, era uma espécie de faz-tudo do escritório –despachava mudanças, montava o equipamento de som para festas da firma etc.

Estava havia 29 anos na companhia, onde entrou por concurso. Segundo a Sabesp, não há registro de processos disciplinares contra ele. Foi demitido por justa causa em 11 de janeiro, três dias após os ataques.

Desde que chegou na unidade de Diadema, há cerca de oito anos, se mostrou um sujeito de direita, mas a conversão cega ao bolsonarismo nos últimos quatro anos, sobretudo na eleição de 2022 e no período pós-eleitoral, surpreendeu e assustou os companheiros de escritório.

“Era uma coisa na política, um terraplanista-raiz, mas no trabalho era um cara excelente, prestativo, honesto, resolvedor de problemas. De zero a dez, era dez”, disse Johny da Silva Soares Rodrigues, representante do Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente de SP) no polo da Sabesp em Diadema.

Segundo colegas, há cerca de três anos, as discussões políticas subiram de tom, e o chefe do setor pediu que o tema fosse evitado no escritório.

“Somos antagonistas na política, somos sindicalistas, totalmente contra as ideias dele, mas isso não interferia no trabalho. Chegamos a discutir, mas ele não fez nada que prejudicasse os outros, não tinha nada que desabonasse, colocava a mão na massa, era um cara bacana”, afirmou Celso Jesus Lopes, o Índio, que também trabalhava no escritório com Aécio.

“Só que ele foi se radicalizando gradativamente nos últimos quatro anos”, relata.

Quem acompanhou bem de perto esse processo foi Valdimar Alves Florêncio, o Mineiro. Profissional da mesma unidade, virou um dos melhores amigos de Aécio, a ponto de ter ido morar no mesmo condomínio que ele, no centro de Diadema, por sugestão do colega. Trocavam ideias, Aécio apresentou Olavo de Carvalho (guru do bolsonarismo) a Mineiro, e Mineiro virou subsíndico do condomínio, do qual Aécio era síndico.

Mas a radicalização de Aécio fez com que rompessem. “Uma vez estávamos no carro, ele estava dirigindo e tentando me convencer de que a Terra era plana, a sério. Ficou tão exaltado por eu ter contestado que bateu o carro”, recorda Mineiro.

“Outra vez, me mandou uma mensagem de madrugada dizendo que Hillary Clinton era um holograma. Acreditava na tese dos reptilianos [alienígenas que se apossam de humanos e assumem suas formas]. Estava vivendo num mundo de teses conspiratórias.”

Mineiro acrescenta: “Se precisar doar sangue para ele, doo, mas não quero no meu convívio. É um cara de bom coração, busca o bem comum, é prestativo. Mas se você não comungar das ideias dele, passa a ser malvisto; se quiser impedi-lo de levá-las adiante, ele vira um extremista. Para mim, é um bobão que usou o conhecimento dele pro lado errado e virou quase um doente”.

Os desentendimentos se estenderam a questões do condomínio, porque, segundo Mineiro, Aécio só queria fazer as coisas do jeito dele. O colega, porém, reconhece que o colega melhorou a gestão do local e relativiza as denúncias de moradores sobre abusos autoritários e intolerância do ex-síndico, contra os quais vizinhos abriram boletins de ocorrência. Alguns desses queixosos, apontam moradores, são inadimplentes há anos ou têm seus próprios BOs.

Quando Bolsonaro perdeu a eleição e seus partidários se concentraram por semanas em frente ao quartel-sede do Comando Militar do Sudeste, no Ibirapuera, Aécio passou a frequentar o local com amigos e familiares de forma frequente e obsessiva. Varava madrugadas no acampamento e estava abatido.

Aécio Pereira foi condenado a 17 anos de prisão e a 100 dias-multa (cada um no valor de 1/3 do salário mínimo) pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça com substância inflamável contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Um dos líderes de um ônibus saído de São Paulo, Aécio se concentrou em Brasília no acampamento de golpistas em frente ao quartel-general do Exército e de lá marchou para invadir o Congresso. Em vídeos publicados em redes sociais, apareceu estimulando ruptura institucional.

Num deles, de um microfone na mesa da presidência do Senado, conclamou: “Eu, como representante do povo, estou aqui para dizer que não aceito este governo fraudulento (…) Gente, saiam nas ruas, dê corroboro [sic] pra gente, saiam nos quartéis, saiam agora, fiquem nas ruas e peçam SOS Forças Armadas”.

O voto do relator, Alexandre de Moraes, foi acompanhado na íntegra pelos ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes e pelas ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia. Sugeriram outras penas Cristiano Zanin (15 anos), Luís Roberto Barroso (11 anos e 6 meses), André Mendonça (7 anos e 11 meses) e Kassio Nunes Marques (2 anos e 6 meses).

Os colegas da Sabesp não foram ouvidos como testemunha pelo advogado Sebastião Coelho, cuja sustentação no julgamento chamou a atenção por afirmar que os ministros do STF são “os mais odiados do país”, o que o transformou de pronto numa espécie de ídolo bolsonarista —Aécio decerto aplaudiria. Procurado, Coelho não atendeu às chamadas nem respondeu às mensagens da reportagem.

Entre os funcionários que trabalhavam com Aécio ouvidos pela Folha, é unânime o juízo de que o STF exagerou na pena do colega. “Ele foi pego como bode expiatório. Gritaram ‘vamos’ e todo mundo foi preso, mas quem gritou não foi”, diz Johny. Mineiro completa: “Se eu pudesse gritar alguma coisa durante aquele julgamento, gritaria: ‘Vocês estão julgando um doido’. Acho que tem que ter punição, mas mais justo seriam uns dois anos de cana”.

Estranharam também que Aécio tenha sido o primeiro a ser julgado, quando houve outros réus que vandalizaram prédios públicos —o que, alegam, ele não teria feito. Segundo o STF, Aécio e os outros dois réus condenados na semana passada foram os cujas ações penais primeiro tiveram a instrução concluída —ou seja, o processo de coleta de depoimentos de testemunhas de defesa, acusação, apresentação de provas, interrogatório do réu e alegações finais foi mais célere.

Aécio, de 51 anos, é casado e tem dois filhos, um de 17 anos e outro de 8 anos. Sua esposa, Lucineia, disse à reportagem que ele “é um pai maravilhoso, muito divertido e engraçado, um ótimo filho e irmão e um excelente marido”.

Conheceram-se há 22 anos e se casaram em 2005. “Sempre amoroso, um coração enorme.” Lucineia naturalmente engrossa o coro de que o marido foi injustiçado. Diz que ele não quebrou nada e que não estava armado, e que não foi considerado no processo um vídeo em que ele, do plenário do Senado, pede moderação. “Ele não é violento. É um homem de Deus, uma pessoa honesta.”

Folha