Pescadores lutam para salvar Abrolhos
“A conversa era que iam tomar uma atitude quando o óleo chegasse a Abrolhos. Pronto, chegou. Se isso passar daqui pra baixo, já foi. E agora, vão fazer o quê? Qual é o plano? Alguém sabe?”, questiona o pescador Carlos Alberto Pinto.
Ele é membro da Associação Mãe da Reserva Extrativista (Resex) de Canavieiras, uma área de aproximadamente 100 mil hectares no sul da Bahia. A reserva é o que dá limite, ao norte, à chamada Região dos Abrolhos, onde está a maior biodiversidade marinha do Atlântico Sul, com mais de 1,3 mil espécies registradas entre fauna e flora.
Na segunda-feira (28/10), foi na Resex de Canavieiras que, usando redes de malha bem fina, pescadores conseguiram “capturar” uma mancha em alto mar, tirando da água, de uma só vez, aproximadamente 80 kg de petróleo.
Nesta terça-feira, mais de 600 kg foram coletados nas praias que integram a Resex. Além disso, o material já foi detectado, em pequenas manchas ou pelotas solidificadas, em praias das cidades de Belmonte e Santa Cruz Cabrália, que estão ao sul de Canavieiras e ainda mais próximas do núcleo do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, criado em 1983.
Sentindo que o desastre ganha cada vez mais volume, Pinto faz outros questionamentos. “Espero que nossa organização cause algum constrangimento no governo, pra sair da zona de conforto e se mobilizar de verdade. Como é que pode ficar só esperando o óleo na praia? Se um barco de pesca pegou uma mancha de 80 kg no mar, cadê os navios grandes da Petrobras, das empresas que prestam serviço? Cadê?”
A mobilização a que ele se refere começou semanas atrás, quando o óleo atingia praias de Sergipe e ainda ensaiava entrar na Bahia — ou seja, estava a mais de 600 km de Canavieiras.
Em comparação, o Comando Unificado de Incidentes, que reúne os mais diversos órgãos governamentais envolvidos no combate ao óleo, realizou sua primeira reunião na Bahia no dia 11 de outubro, uma semana depois de a substância tóxica ter chegado às praias do Estado.
Esquema de guerra
Atentos ao óleo que navegava livremente em sua direção, os pescadores que atuam na Resex de Canavieiras montaram um esquema de guerra: dividiram o perímetro em nove áreas, criaram uma tabela de monitoramento e estabeleceram grupos responsáveis por checar, todos os dias, a presença de manchas na água, nas praias e nos estuários e manguezais.
“Só aqui temos noves barras de rio que levam o óleo direto pros manguezais. Se isso entrar forte, vai ser caótico, então, estamos fazendo o que está ao nosso alcance”, diz Pinto.
Todo o sistema de defesa foi montado com doações e apoio de empresas da região, organizações não governamentais e pesquisadores.
Sem recursos emergenciais ou equipamentos do poder público, o jeito foi apostar em materiais dos próprios pescadores ou disponíveis no ambiente, como barcos de variados tamanhos, puçás, redes e cortinas feitas com siripoias e galhos de casuarina. Isso sem falar na força humana.
Já são aproximadamente 600 pessoas envolvidas no trabalho, entre pescadores, marisqueiras, técnicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que já atuam na Resex e moradores da região que se apresentam como voluntários. Encorpada, a operação ganhou nome: SOS Mangue Mar Canes.
Antes de pescar o óleo no mar, o grupo chegou a fazer três simulações. “É um trabalho minucioso, porque esse óleo vai mudando de característica. Na água, tem uma textura, quando tira, já muda e, quando esquenta, derrete rápido”, diz o professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Miguel Accioly, que acompanhou as simulações e tem dado apoio técnico aos pescadores desde o início da crise.
“Estamos tentando direcionar os esforços para o que é possível fazer. E essa captura do óleo no mar dá algum ânimo. Não dá só para esperar chegar na praia e limpar”, afirma Accioly.
Desde que foi formado o Comando Unificado de Incidentes, grupo formado por representantes de órgãos ambientais, prefeituras, Estado e outras entidades para lidar com a crise, o pesquisador defende a inclusão de representantes dos pescadores entre seus membros, para que pudessem somar seu conhecimento sobre as áreas afetadas às discussões sobre possíveis ações a serem tomadas.
Em tese, a sugestão foi aceita, mas nenhum pescador foi convidado para as reuniões diárias até agora.
“Nós montamos nosso plano. Não é questão só de proteger o meio ambiente, mas as pessoas. Nossa vida é isso aqui. Não dá pra dissociar a natureza da gente. A região somos nós”, afirma Pinto.
“Quem for de orar, ore, quem for de rezar, reze, porque, se bater aqui o óleo que já chegou em Boipeba, acaba com a gente.”
Abrolhos sob ameaça
A Resex de Canavieiras está dentro da Região dos Abrolhos, mas ainda não faz parte do Parque Nacional. Por isso, o esquema de defesa montado pelos pescadores pode atenuar os impactos do óleo na área.
Aquela região abriga a mais extensa bancada de corais do Brasil e do Atlântico Sul, que resguarda, justamente por causa disso, a maior biodiversidade marinha da porção sul do Atlântico.
Entrando pelos estuários, estão alguns dos maiores manguezais do país, protegidos por Resexs como a de Canavieiras e a de Cassurubá.
A região possui ainda a maior produção pesqueira da Bahia, movimentando aproximadamente R$ 100 milhões por ano e provendo sustento a mais de 20 mil famílias.
É este conjunto de ecossistemas e atividades econômicas que pesquisadores tanto temiam que fosse alcançado pelo óleo, como a BBC News Brasil mostrou em reportagem publicada no dia 26.
“Apesar de ter sido menos óleo, em comparação às toneladas que já foram removidas em outras praias, teve essa coleta volumosa em alto mar. É um sinal que tem mais óleo na água, e isso é muito preocupante”, diz Guilherme Dutra, diretor da estratégia costeira e marinha da Conservação Internacional (CI), organização sem fins lucrativos que atua na região.
A pesquisadora em ecotoxicologia Letícia Aguilar não está otimista. “Tirar a mancha não significa que a água está livre de contaminação. Tem uma parte que já dissolveu e fica na água. Então, a toxicidade vai atingir tudo que estiver na água, todos os organismos”, afirma.
Ela defende nesta quarta-feira sua tese de doutorado, feita a partir de uma pesquisa no Golfo do México sobre derramamento de petróleo, e teme pelo equilíbrio de todos os ecossistemas atingidos pelo óleo, especialmente em Abrolhos.
“As pesquisas mostram uma diminuição das populações de todos os organismos do ecossistema ao longo dos anos após o derramamento, porque a contaminação persiste no ambiente. Abrolhos tem muitas espécies endêmicas, que só existem ali. Então, se elas morrerem, significa que desaparecerão da face da Terra.”
Caso uma espécie morra, há um desfalque na cadeia do ecossistema, então, outras espécies que dependem daquela primeira sofrerão as consequências. “É morte que gera morte que gera morte”, diz Aguilar.
E os seres humanos? “Não se recomenda de jeito nenhum comer pescados e mariscos dessas regiões atingidas. É triste dizer, mas as comunidades que vivem da pesca estão arruinadas.”
“Aliás, não se deveria nem entrar na água até que existam análises precisas que apontem que já não existe contaminação. Isso é muito sério. As pessoas podem desenvolver doenças que vão de alergias a câncer”, afirma a pesquisadora.
Sem conclusões
A BBC News Brasil questionou o Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA) do incidente de poluição por óleo no litoral do Nordeste, liderado pela Marinha, pedindo informações sobre as estratégias para conter a substância na Região dos Abrolhos, já que pescadores conseguiram capturar 80 kg no mar.