Câmara se calou diante do racismo de Tadeu
OS DEPUTADOS DO PSL têm se sentido cada vez mais à vontade para barbarizar a vida política brasileira. Até o ano passado, Jair Bolsonaro era um dos poucos parlamentares que usava o mandato para expressar seu desprezo pelos valores democráticos. Com o bolsonarismo, isso virou padrão. Todo dia tem um figurão do PSL xingando opositores, atacando as instituições, perseguindo jornalistas, exaltando assassinos e fazendo ameaças de todo tipo contra a democracia. A coisa já está fora de controle.
Essa semana, deputados do partido cometeram algumas barbaridades que não podem passar impunes. Em São Paulo, o deputado estadual Frederico D’Avila propôs uma homenagem a Augusto Pinochet, o ditador que aterrorizou o Chile por quase trinta anos e foi condenado internacionalmente por terrorismo e genocídio. Mas isso está dentro do que se espera da extrema-direita brasileira. A novidade é que agora há deputados expressando de forma direta e clara o racismo que antes estava camuflado.
Na Câmara dos Deputados, na véspera do dia da Consciência Negra, o Coronel Tadeu vandalizou uma exposição contra o racismo. Ele não gostou de uma obra que denunciava os assassinatos de jovens negros cometidas pela polícia e resolveu destruí-la. Outro deputado, Daniel Silveira, um dos que destruiu a placa de Marielle Franco saiu em defesa do coronel Tadeu, subindo mais alguns degraus no racismo: “Há mais negros com arma, mais negros cometendo crime, mais negros confrontando a polícia, mais negros morrem. (…) Não venha atribuir à polícia mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”. Essa foi a declaração mais escancaradamente racista que já se ouviu no plenário da Câmara.
Pouco antes do vandalismo racista de Tadeu, Silveira gravou um vídeo em frente à obra que seria destruída e falou “o que me incomoda mais é esse jovem com a camisa que faz alusão ao pavilhão nacional algemado como se o policial o tivesse executado sumariamente esse jovem já preso. O que é um absurdo e um escárnio contra imagem da Polícia Militar. Vamos tomar todas as medidas para retirar. Isso não pode permanecer aqui”.
A charge é de 2013, mesmo ano em que o ajudante de pedreiro Amarildo, negro, foi preso, torturado, morto e teve seu corpo ocultado por policiais militares. É uma prática comum de maus policiais, que sabemos não serem poucos. Casos como o de Amarildo pipocam aos montes dos noticiários, mas outros tantos nós nem ficamos sabendo. Há uma cultura de violência e racismo impregnada na Polícia Militar, que é reflexo do país. Silveira quer silenciar o debate sobre racismo na corporação, justamente numa casa dos debates públicos. Os pitbulls do PSL não querem saber de democracia e querem impor os valores bolsonaristas na marra.
Já o coronel justificou a sua ação sem negar a existência do genocídio. Para ele, se a maioria das periferias é composta por negros — um fato racista em si —, logo é natural que haja mais mortes de negros associados ao tráfico. Tadeu finge ignorar Ágatha, Jenifer, Kauê, Kauan, Katelen e tantas outras crianças negras assassinadas neste ano que não tinham qualquer ligação ao tráfico. Quando todas as crianças assassinadas por policiais durante a guerra ao tráfico são negras, que nome dar a isso senão genocídio? A morte de crianças é tratada como efeito colateral.
Alguma dúvida de que Silveira e Tadeu jamais apoiariam tiroteios diários no Vivendas da Barra? Onde crianças brancas conviviam com criminosos de alta periculosidade fortemente armados como Ronnie Lessa? Quem trata assassinatos em série de crianças negras apenas como um efeito colateral infeliz é racista. A revolta contra quem denuncia essa realidade também é genuinamente racista. Não há meio termo. Qualquer tentativa de tratar isso com eufemismos será conivente com o racismo.
A violência com que Tadeu e Silveira reagiram a um protesto feito em um cartaz nos faz pensar que tipo de ex-policiais eles foram. Se reagem com violência a uma charge estampada em um cartaz, não é difícil imaginar como agiam com armas na mão durante operações policiais. E a mensagem que passam para os atuais integrantes da corporação é a de que estão no caminho certo. E para os negros há também um recado embutido: vocês vão continuar enterrando seus filhos.
Políticos de extrema-direita, claro, saíram em defesa dos seus comparsas de racismo. Os de esquerda organizaram um ato em protesto na Câmara e entraram com uma representação na Procuradoria-Geral da República contra os deputados por quebra de decoro e racismo. Mas e a turma dita moderada de centro, centro-direita e direita? Fizeram apenas criticadas moderadas, protocolares, tratando essa selvageria como uma quebra de decoro qualquer. É incrível que a luta contra o racismo, que deveria ser uma bandeira empunhada por todos os políticos decentes, tenha virado uma pauta identificada com as esquerdas.
João Amoêdo e o partido Novo, por exemplo, que apoiam quase que integralmente o bolsonarismo nas votações na Câmara mas tentam escapar da pecha extremista, se calaram. Além de não postarem nenhuma mensagem sobre o Dia da Consciência Negra, não repudiaram os atos racistas dos seus aliados. Um silêncio bastante conveniente com quem se preocupa apenas com a economia, mas pretende posar de moderado. E nós sabemos que quem cala diante da opressão se coloca automaticamente ao lado do opressor.
Rodrigo Maia repudiou o ato do Coronel Tadeu, mas não deu a devida gravidade para o caso. Não apontou o caráter racista do episódio e o chamou de “ato impensado em um momento de mais nervosismo do deputado”. Entendo que, como presidente da Câmara, Maia tem o papel de não acirrar mais os ânimos. Mas o combate ao racismo é inegociável. Não é possível que isso seja tratado como uma infelicidade de um colega. A obrigação de um presidente da Câmara realmente comprometido na luta contra o racismo seria encampar um movimento pela cassação dos parlamentares.
A escalada do neofascismo no Brasil é uma realidade. Em entrevista para a Deutsche Welle, a antropóloga Adriana Dias apontou a existência de 334 células nazistas no país, com pelo menos 5 mil integrantes ativos. Os grupos se concentram no sul e sudeste, mas estão se expandindo para o centro-oeste. Segundo ela, “a sociedade brasileira está nazificando-se. As pessoas que tinham a ideia de supremacia guardada em si viram o recrudescimento da direita e agora estão podendo falar do assunto com certa tranquilidade. Precisamos abordar o tema para ativar o sinal de alerta. Justamente para não dar palanque a essas ideias, precisamos falar sobre criminalização de movimentos de ódio e resgatar a questão crucial: compartilhar humanidades”.
Não há nenhuma dúvida de que esses grupos se identificam com o bolsonarismo. É esse o contexto social que envolve os atos racistas no parlamento. Como a Câmara vai reagir? Punirá exemplarmente atos racistas com cassação ou irá empurrar para debaixo do tapete tratando a barbárie como infelicidade? O Conselho de Ética da Câmara vai tolerar racismo explícito em plenário?
Enquanto a Câmara não exercer um controle interno rigoroso para punir ataques contra valores democráticos fundamentais, os limites ficarão cada vez menos claros e as práticas fascistoides cada vez mais naturalizadas. Passar pano para o racismo de gente com mandato público é, na prática, incentivar a perpetuação das práticas racistas na sociedade. É fechar os olhos para as crianças negras assassinadas pela polícia e minimizar o apartheid brasileiro.