“Future-se” ainda é uma ameaça, dizem especialistas da Educação
Foto: Luis Fortes/MEC
Apresentado em julho pelo Ministério da Educação (MEC), o programa Future-se foi a principal aposta do governo Bolsonaro para sair da defensiva depois do desgaste causado pelo contingenciamento das verbas das universidades. A proposta inicial previa a participação da iniciativa privada no financiamento e também na gestão das instituições de ensino e pesquisa. Rejeitado pela quase totalidade da comunidade acadêmica, que apontava riscos de perda de autonomia nas gestão dos recursos, o projeto sofreu alterações, após o Ministério Público Federal (MPF) exigir a abertura de consulta pública.
Foram 20 mil sugestões de mudança, e a nova versão ainda não saiu do papel, o que deve ficar para 2020. A expectativa do MEC era enviar a atualização do Congresso até o fim de novembro, o que não aconteceu. Especula-se ainda a saída do ministro Abraham Weintraub, que não deve voltar no ano que vem, dados os desligamentos já consolidados dos seus assessores mais próximos. Pesquisa divulgada pelo Datafolha neste domingo (22) mostra que 67% da população brasileira apoia o ensino superior público e gratuito.
O professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) Salomão Ximenes – coordenador do grupo de pesquisa Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola – diz que o Future-se, por ora, foi derrotado, mas o que preocupa são as tendências que o programa representa, de pretender retirar do Estado a responsabilidade exclusiva do financiamento do ensino superior e da pesquisa e a tentativa de aplicar nas universidades públicas um modelo de gestão que aponta para a privatização.
Ximenes é um dos organizadores do livro Future-se? Impasses e perigos à educação superior pública brasileira (Ed. UFABC), que, junto com outros 12 especialistas em políticas educacionais, esmiúça os riscos apresentados pelo programa. A porta de entrada para a privatização das instituições de ensino se daria através das Organizações Sociais (OS), que são entidades privadas que passariam a gerir a aplicação dos recursos captados externamente. É o mesmo modelo adotado que se popularizou no setor da saúde nas últimas décadas, com resultados bastante questionáveis, para dizer o mínimo.
“O Future-se oferece um modelo híbrido de OS, que sequer está previsto na legislação, para tentar destravar esse processo em prol da privatização. Não é uma invenção de agora. É uma tendência de reforma gerencial do Estado, que vem de longa data e se apresenta neste momento. Por isso é perigoso. Se fosse só uma invenção do Bolsonaro, seria menos perigoso”, afirma o professor.
A introdução das OSs acabariam causando uma “pulverização” da administração das instituições de ensino, e acabariam entrando em choque com órgãos colegiados que fazem a gestão democrática das universidades, como os conselhos universitários e de pesquisa. Além de ferir a autonomia universitária, as empresas financiadoras poderiam ainda influir nos rumos da pesquisa, priorizando interesses privados em vez de privilegiar o interesse público.
Os especialistas demonstram como a situação orçamentária das universidades brasileiras vem se agravando após a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada no governo Temer, que congela os investimentos públicos por 20 anos. Mostram como é irrealista imaginar que as universidades possam captar autonomamente recursos para financiar as suas atividades, e como a lógica privada produziu segregação e piora na qualidade do atendimento no sistema de saúde público inglês, por exemplo, que passou a adotar modelo semelhante das OSs a partir das reformas neoliberais introduzidas pela então primeira-ministra Margareth Tatcher.
A obra também mostra que os recursos públicos são essenciais para o financiamento das pesquisas das universidades dos Estados Unidos, país apontado como modelo para os que defendem a privatização do ensino superior. Um grupo seleto de instituições de ponta, como o Massachusetts Institute of Technology (MIT), ficam com a maior parte dos recursos privados aplicados em pequisa. Já a maioria dos alunos são formados em instituições públicas ou contam com bolsas financiadas pelo governo em instituições privadas.
Em vez da participação exclusiva das empresas através das OSs, Ximenes defende a realização de parcerias das universidades também com movimentos sociais e ONGs, além de governos estaduais e prefeituras. Ele também aponta para a necessidade da criação de um fundo público para gerir os recursos arrecadados pelas instituições de ensino. Hoje, esses recursos captados em projetos de parceria com empresas vão para o caixa único do governo, em vez de serem reinvestidos nas pesquisas desenvolvidas, o que desestimula a busca por parceiros. Ele também defende a aprovação da Lei Orgânica das Universidades, também em tramitação no Congresso, ignorada pelo projeto apresentado pelo governo.
Outra medidas que garantiria a autonomia das universidades é a eleição direta para reitores, em substituição o modelo atual baseado na lista tríplice, quando o governo escolhe entre os três nomes mais votados pela comunidade acadêmica. Essas e outras medidas constam na proposta intitulada Outro Futuro, elaboradas por especialistas da UFABC, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). A proposta também foi formulada em conjunto com com a União Nacional dos Estudantes (UNE), com a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), como um contraponto ao Future-se.