Mangueira ameaçada por enredo sobre Jesus
Em tempos de discussões acaloradas, o carnaval também caiu na algazarra de fake news, boatos e ataques virtuais que contaminou a política, as relações sociais e até a ciência. A artilharia está apontada para o enredo da Mangueira, sobre Jesus (“A verdade vos fará livre”). O tema gera uma série de afirmações e interpretações em relação ao desfile que, segundo o carnavalesco Leandro Vieira, nada têm a ver com o que será levado à Avenida. Em textos e vídeos disseminados na internet, a verde e rosa é acusada de blasfêmia e de promover o descrédito na fé cristã. O Salvador retratado pela agremiação recebe o rótulo de “comunista”, entre outros. E se especula, inclusive, que o samba sugere uma aparição de Cristo numa boca de fumo.
Depois de intimidações nas redes sociais, na semana passada propagaram rumores de que o barracão da escola teria sido atacado. Não se chegou a tal ponto, mas integrantes da Mangueira temem que ameaças sejam consumadas. Até agora, o que existe de fato é um abaixo-assinado contra o enredo, aberto pela associação católica Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, com 94.834 apoiadores até as 20h da última sexta-feira. No barracão — onde foi estendida, anteontem, uma faixa com o verso “Mangueira, vão te inventar mil pecados” —, um dos trabalhos tem sido desmentir informações falsas que aparecem.
— De certa forma, isso só mostra que estou propondo algo antenado com o debate atual. A figura de Jesus é mote para quase tudo. Discursos políticos são feitos em nome de Cristo, e as pessoas se dizem terrivelmente cristãs. Mas, enquanto alguns apresentam o Jesus bélico, outros podem mostrá-lo de uma maneira diferente — afirma Leandro. — O enredo da Mangueira é o Cristo original, a favor da dignidade humana. As pessoas vão olhar (os carros alegóricos e as fantasias) e entender de imediato, porque é uma história que todos conhecem, até quem se manifesta contra o enredo.
Nas tintas do artista, o que muda é que, na versão da verde e rosa, Jesus volta nos dias de hoje e nasce pobre no Morro da Mangueira. Ele aparecerá no desfile com várias faces, e é nesse ponto que reside algumas das polêmicas mais barulhentas. Ainda no segundo semestre do ano passado, a partir da escolha do enredo e, posteriormente, do samba para 2020, surgiram críticas à escola. Este mês, após os desdobramentos do imbróglio envolvendo o especial de Natal do Porta dos Fundos, os questionamentos tomaram outra dimensão.
Desinformação
Num vídeo divulgado nas redes sociais, um internauta lembra o humorístico exibido na plataforma de streaming e afirma que a Mangueira fará pior: mudar a Bíblia para dizer que “Jesus Cristo praticamente era o capeta”. Foi o estopim. A publicação viralizou, teve mais de 133 mil visualizações apenas no Facebook e passou a ser citada em matérias de sites — uma delas compartilhada, inclusive, por Olavo de Carvalho, guru intelectual do bolsonarismo. Começaram, então, a brotar as mais diferentes hipóteses sobre o desfile da Mangueira.
Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Fábio Malini destaca que o episódio mostra como a desinformação começa a atingir aspectos não imagináveis até pouco tempo, como o carnaval:
— Nesse caso, há muitas variáveis envolvidas, como a própria figura do carnavalesco, bastante engajado, que atrai a oposição dos polos mais conservadores. Ao difundir os boatos, tenta-se desestabilizar o alvo, no caso da Mangueira, e exercer uma pressão para saber o que será apresentado na Sapucaí ou mesmo enlamear o enredo, afetar a avaliação do desfile pelos julgadores. É esse o jogo.
O carnavalesco responde ao que dizem por aí
Tentativa de desacreditar a fé cristã:
“Totalmente equivocado. O desfile da Mangueira pode ser entendido como uma homenagem aos valores originais de Cristo, como a fraternidade, a compaixão e o abraço aos diferentes. O enredo não tem spoiler: Jesus nasce pobre numa manjedoura e morre na cruz. Não tem nada inventado, nada diferente do que os filmes que passam na Páscoa já não tenham exibido”
Imagem de Cristo desconfigurada:
“Em parte alguma a Bíblia revela qual é o traço físico de Jesus. Mas sua face eurocêntrica, branca, de olhos azuis e cabelo loiro, foi a difundida. A Mangueira vai apresentar as outras faces de Cristo. É o Jesus que mora na rua, oriundo das regiões mais pobres, na face de uma mulher agredida. Isso, sim, é fato”
Retrato de um Jesus dos excluídos:
“Perfeito. O Brasil lidera o ranking de agressões à população LGBT, está no topo dos índices de feminicídio, enfrenta um racismo estrutural profundo e, vira e mexe, vê pessoas em situação de rua agredidas. O Jesus da Mangueira tem essas faces. Será que as pessoas estão preparadas para enxergar Cristo na figura de um homem negro, de boné e sem camisa?”
Moleque pelintra na boca de fumo:
“Essa imagem (em referência ao trecho do samba ‘Moleque pelintra do Buraco Quente’) é falsa. Moleque pelintra é um jovem maltrapilho, a cara da Mangueira e de todas as comunidades do Rio. Já o Buraco Quente é uma das regiões pobres da Mangueira, onde a escola foi fundada. Acredite, em meio aos boatos, já se falou até que o Buraco Quente teria uma conotação sexual”
Versão carnavalesca da Teologia da Libertação:
“Não. Um artista plural lê tudo. Na pesquisa, li a respeito da Teologia da Libertação. Mas a questão principal não é essa. É debater o Brasil de agora. Desde o meu primeiro carnaval, em 2015, minha temática é exclusivamente brasileira. O Jesus que proponho tem respaldo em várias lideranças religiosas”
Combate à ‘supremacia branca’:
“Combater acho uma palavra exagerada. Mas que tipo de percepção teríamos em relação aos problemas sociais brasileiros contemporâneos se tivéssemos feito uma associação de Cristo com um homem negro oprimido? Ou que Jesus não tivesse sido usado como justificativa para a catequização que torturou indígenas?”.