FHC teme que, depois, militares não queiram deixar o poder
Foto: FELIX LIMA/BBC NEWS BRASIL
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostra preocupação com a possibilidade de que as Forças Armadas possam se apegar ao poder em um governo com cada vez mais militares e enxerga no país um cenário político com o Legislativo e Judiciário tentando preencher vazios deixados por um Executivo que, de acordo com ele, está “cambaleante” e “sem rumo definido”.
“Há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo”, afirmou FHC, de 88 anos, em entrevista à Agência Efe por videoconferência em sua residência, em São Paulo. “Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia”, acrescentou.
Na entrevista à Efe, o ex-presidente também opinou que Sergio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. “Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas)”, comentou. Leia abaixo a entrevista.
O senhor chegou a pedir nas redes sociais a renúncia de Bolsonaro. Mantém essa posição?
Na política interna, sou duro com ele. Não porque não gosto dele ou porque não é do meu estilo, mas porque ele exagera. Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia. E ter casos em que o presidente participe dessas agressões é grave. Os que têm força política têm que se expressar em defesa da democracia. Neste momento, quando se nota que o Executivo está cambaleante e não tem um rumo definido, o que acontece? Os demais órgãos constitucionais, a Suprema Corte, os Parlamentos, começam a ocupar o vazio de poder, e isso é perigoso.
Bolsonaro está mal assesorado, recebe influência negativa dos filhos? Qual é o problema com o governo?
Não estou lá, nem o conheço. Bolsonaro era deputado, eu era senador, ministro, presidente. Nunca o vi. Ele queria me matar uma vez, (disse que) queria atirar em mim (em referência a uma declaração de Bolsonaro no final dos anos 90), porque me acusou de ser neoliberal. Eu não o conheço, nem conheço seus familiares. Para os presidentes, há sempre o risco de que a família comece a opinar demais. O povo escolheu o presidente, não sua família. Que a família fique em silêncio. No caso dele (Bolsonaro), é mais complicado, porque os três filhos mais velhos têm mandato político próprio (Flávio é senador, Carlos é vereador no Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal).
É importante observar o que está acontecendo nos Estados Unidos. Trump incentiva a posição “America First” (“EUA primeiro”), e isso leva a uma atitude isolacionista. Se o Brasil tem uma grande vantagem neste mundo confuso, é por estar longe da China e dos EUA. Podemos exportar para ambos. A China é o cliente número 1, e os EUA são o número 2, e não há por que o Brasil se alinhar a um dos dois polos, se é que são polos.
Sobre a ideologia que é propagada por (o ex-estrategista de campanha de Trump, Steve) Bannon nos EUA, aqui (no Brasil) há um senhor de quem nunca ouvi falar (o filósofo Olavo de Carvalho) e que está sendo muito propagado, e não é importante culturalmente falando, mas politicamente sim, porque inspira ações da família presidencial. Então há um movimento nessa direção, o que eu acho perigoso.
Alguém mencionou que o Brasil se pareceria com a Itália entre guerras de Mussolini. Mas Mussolini era uma pessoa muito culta se comparada ao atual aqui (Bolsonaro). Não tem nada a ver com Mussolini, o que acontece aqui é que não há uma visão ideológica organizada, aqui há um impulso instintivo que considera algumas coisas como mundo ‘globalista’, que há um ‘marxismo globalista’. Não tenho idéia do que seja, e as pessoas entendem como verdade. A situação é verdadeiramente preocupante, mas ele tem legitimidade, porque foi eleito pelo voto popular.
Qual leitura o senhor faz da ala militar do governo?
Os militares aprenderam com o que aconteceu no passado. Eles sabem que devem respeitar a Constituição e, pelo que sei, essa é a posição oficial das Forças Armadas. Agora, todo governo que começa a ser fraco, a não ter força, nomeia militares. Lembro-me de (Salvador) Allende, no Chile, quando começou a nomear militares. Aqui também, quando os governos não são fortes, eles dependem das Forças Armadas, e acho que isso é um risco para as Forças Armadas, porque elas passam a ter gosto pelo poder.
Entretanto, isso ainda não aconteceu aqui, mas pode, porque há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo, não uma força. Sob a condição de que a força regular permaneça em uma posição pró-Constituição, nada acontece. Mas se as Forças Armadas, independentemente do que possa acontecer, se colocarem na posição de apoiar incondicionalmente o presidente, isso é grave, e a unidade democrática morre. Não acho que estejamos nesse processo e não acho que essa seja a opinião das pessoas ativas nas Forças Armadas.
Meu pai era general, e meu avô, marechal. Tenho um certo conhecimento quase empático dos militares. No passado, eles eram mais políticos, depois se profissionalizaram. Há uma questão que qualquer militar, depois de um certo ponto, não aceita: a desordem. Então eles tentam trazer ordem, e isso é perigoso. Pode acontecer? A pandemia está servindo como uma vacina para demonstrações de rua. Acredito que políticos, profissionais e jornalistas têm a responsabilidade de alertar o país para que não cheguemos a um ponto de desordem, porque depois chegam os militares, e eu não quero isso. É ruim para o país e para eles, que serão responsabilizados pelo que acontecer.
Como o senhor analisa as saídas de Sergio Moro (ex-ministro da Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (ex-ministro da Saúde) do governo?
Vi Sergio Moro duas vezes na minha vida. Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas).
E qual foi a consequência imediata de uma saída como a do ministro da Saúde (Mandetta)? Na minha opinião, uma saída doida, irracional. O prestígio do presidente está diminuindo. Muitos o apóiam, mas não são a maioria. (A saída de) Mandetta não teve tanto efeito, mas Moro era um pilar.
E o outro pilar, que é o ministro da Economia (Paulo Guedes), muito bem visto pelos empresários, tem um projeto que não pode mais ser aplicado. Ele tem uma visão que certamente estava certa no passado (ajuste dos gastos públicos), necessária, mas com a pandemia a visão é de gastar mais e aumentar a dívida pública.
Como o senhor avalia o combate à Covid-19 no Brasil, onde o presidente não segue à risca as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)?
O pior é que atingiu as áreas mais populares. Para mim, nada muda, mas quando uma pessoa vive na periferia de São Paulo, na miséria, em uma favela, com muitas pessoas em casa, sem conforto… as pessoas têm que ir às ruas (…) Mesmo que haja recomendações da OMS para que fiquem em casa, para as pessoas mais pobres é um castigo, porque é impossível. Além disso, há uma falta de liderança. Às vezes, o presidente (Bolsonaro) está com outras pessoas na rua sem usar máscara, como se nada tivesse acontecido (…) É perceptível que a falta de coordenação é prejudicial, ainda que o Brasil tenha a vantagem de um sistema de saúde gratuito e universal.
Alguns políticos, inclusive juristas, consideram que Bolsonaro pode ser procesado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não seguir as recomendações da OMS. O senhor considera plausível?
Não vejo que tenha muito o que fazer (a CIDH), outras oportunidades foram perdidas quando houve violência, tortura… O atual presidente tem essa visão de amigos e inimigos, o que não ajuda para o que é necessário agora, que há mais coesão para combater um inimigo comum (coronavírus). É um sério fracasso político, mas não acho que será resolvido com impeachment, por enquanto. Dependerá de como o presidente agir. Estou muito preocupado com o que virá depois da pandemia (…) Haverá muita gente desempregada.
Por outro lado, meu sentimento é de que não há pressão militar para a queda do presidente. Os militares, felizmente, há muito tempo respeitam a Constituição. Não podemos nos distanciar do quadro constitucional, pois isso seria muito perigoso para as instituições e para a liberdade. Não há inimigos da liberdade, a imprensa é livre, a Justiça funciona e não existe tal sentimento como vivi em outros tempos (alusão à ditadura).