Militares pressionaram Constituinte por artigo na Constituição
Foto: Ricardo Hiar/Folhapress
O vago artigo da Constituição que trata do papel das Forças Armadas, hoje mencionado como argumento para intervenção militar por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, foi gestado sob forte pressão de oficiais militares sobre o Congresso no período imediatamente após o fim da ditadura.
O artigo 142 da Carta diz que as Forças Armadas, além da defesa nacional, se destinam à “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Esse formato amplia as atribuições para além de seu papel fundamental, o de defesa do território, e vai em direção oposta a de outros países que fixam preceitos mais restritos.
Em uma interpretação muito criticada por advogados e professores de direito, apoiadores das Forças Armadas mencionam o trecho da lei como uma espécie de dispositivo legal para a intervenção.
Desde a época dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016, passando pela greve dos caminhoneiros em 2018 e agora nos atos pró-Bolsonaro, a aplicação do artigo 142 virou quase um bordão de extremistas intervencionistas.
O item da Constituição também foi mencionado por Bolsonaro na reunião ministerial em abril, cujas imagens foram divulgadas na sexta-feira (22) por ordem do Supremo Tribunal Federal.
“Todo mundo quer cumprir o artigo 142. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para reestabelecer a ordem no Brasil”, disse ele, ao rebater críticas a sua presença em atos com apoiadores da intervenção.
O acirramento do ambiente militar voltou a ganhar destaque, também na sexta, após declaração do general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, “alertando” de que eventual apreensão do celular de Bolsonaro em investigação poderia gerar “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Na gênese da formulação desse item, na Assembleia Constituinte de 1987 e 1988, o meio político vivia sob clima de transição democrática, fortemente influenciada por militares que haviam governado o país até 1985, quando José Sarney assumiu a Presidência.
Estabelecer formalmente na lei a possibilidade de influência das Forças Armadas sobre assuntos internos, como “a garantia dos poderes”, era seguir o que já havia se tornado praticamente uma tradição no país.
A Constituição formulada nos anos 1960, durante a ditadura, já adotava essa linha, assim como as cartas de 1946 e 1891.
Já desde o anteprojeto em uma subcomissão da Constituinte, em 1987, a expressão “lei e ordem” constava no texto de proposta. Nos debates, também se podia constatar o peso dado à opinião militar: 4 das 7 audiências públicas no órgão tiveram exposição da classe.
A comissão que tratava do assunto, aliás, era comandada por um antigo peso-pesado do antigo regime, o senador Jarbas Passarinho (então no PDS do Pará), ex-ministro signatário do AI-5 (Ato Institucional nº 5), em 1968, e coronel da reserva.
O porta-voz das demandas militares era o general Lêonidas Pires Gonçalves, ministro do Exército de Sarney e que havia tido papel destacado até na ocasião em que o presidente eleito Tancredo Neves adoeceu na véspera da posse e não pôde assumir o cargo.
Em agosto de 1987, a Folha noticiou que Pires Gonçalves havia reclamado em reunião a portas fechadas com o ministério que o governo não estava conseguindo ver suas posições refletidas nos trabalhos da Constituinte e que uma minoria de ativistas se sobrepunha aos moderados.
No lado dos opositores, uma das principais vozes na Constituinte era a do então deputado José Genoino, que posteriormente seria presidente do PT e condenado no escândalo do mensalão.
“É em nome da ‘ordem’ que em muitos momentos acontecem intervenções militares, golpes militares, golpe de Estado. Porque, muitas vezes, o juízo subjetivo dos militares é que eles podem rasgar o texto constitucional para defender a ‘ordem'”, dizia o petista a colegas.
Ele articulou mobilização para substituir a expressão “lei e ordem” por “ordem constitucional”, tese que provisoriamente prevaleceu.
Quem apoiava o uso da expressão “lei e ordem” dizia que ela serviria, por exemplo, para que houvesse presença militar em crises nos estados e na segurança de eleições.
A deputada federal baiana Lídice da Matta (PSB), que participou da Constituinte pelo PC do B, diz que havia uma disputa significativa “para diminuir a influência militarista na Constituição”, em meio à tensão política do período.
“As assessorias parlamentares de cada ministério militar tinham uma atuação grande. Ficavam lá em todas as votações, presentes. O acompanhamento também era uma forma de pressão.”
Na comissão, diz ela, deputados e senadores eram “escolhidos a dedo”, e líderes de esquerda tinham forte atuação.
Entre idas e vindas, foi adotado um paliativo no texto: a atuação militar na manutenção da ordem precisaria partir do chamado de um dos três Poderes, mecanismo que não existia até então.
Líder do PMDB no Senado, Fernando Henrique Cardoso celebrou a iniciativa como uma inovação que romperia com a trajetória das Forças Armadas como instituição de “papel moderador” no país.
Relator de uma das principais comissões, o deputado Bernardo Cabral (então no PMDB do Amazonas), rejeitava a crítica sobre “tutela militar” sobre o processo político, mas deu em sessão uma explicação controversa para a fórmula a ser adotada.
“Dou um exemplo: o Poder Legislativo está reunido dentro da lei, o Poder Executivo resolve contrariá-lo. Basta que convoquemos as Forças Armadas e, pelo texto constitucional, vai ter que defender quem está a favor da lei e da ordem.”
A votação final dessa parte da Constituição foi marcada para o fim de agosto de 1988.
Na véspera, o ministro do Exército veio a público declarar que as Forças Armadas precisavam atuar em eventuais agressões estrangeiras e, salientou, no “jugo das paixões internas”. “[Deve-se] Dizer não às cantilenas personalísticas, não às pregações divisionistas e não aos visionários imediatistas.”
No mesmo dia, Sarney deu declarações de aceno ao meio militar, chamando as forças de defensores da ordem, justamente a expressão questionada.
Genoino dizia que o trecho dava “pretexto jurídico” para um golpe e criticava o lobby militar. Por fim, apresentou emenda para suprimir o trecho sobre “ordem”. A deputada tucana Dirce Quadros, filha do ex-presidente Jânio Quadros, fez um apelo na sessão contra o que chamava de “oferecer uma grande abertura ao golpe militar”.
No plenário, apenas partidos mais à esquerda, como PT, PC do B e PDT, votaram pela emenda de Genoino, e o trecho sobre as Forças Armadas permaneceu como negociado com militares. A Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988.
Jarbas Passarinho, que morreu em 2016, declararia anos depois que o debate sobre as atribuições militares havia sido imenso. “Especialmente o grupo da esquerda não aceita que o papel das Forças Armadas esteja ainda, também, relacionado com a defesa da ordem interna.”
Sarney, em 2018, afirmou que a discussão era muito sensível porque a “estabilidade no setor militar” no período pós-ditadura dependia dela. “Não vamos ser ingênuos, eles ainda estavam muito presentes.”
Para o hoje vereador no Rio César Maia (DEM), deputado constituinte pelo PDT e ex-prefeito, a principal questão envolvendo as Forças Armadas nos debates era a criação do Ministério da Defesa, unindo as três corporações militares. Essa proposta saiu do papel apenas em 1999.
Já a questão da atribuição das Forças Armadas, afirma ele, não chegou a ser tratada como polêmica, e os textos “tramitaram suavemente por ampla maioria”.
O artigo 142 acabaria embasando lei complementar na década de 1990 que regulamenta operações de garantia da lei e da ordem, adotadas, por exemplo, quando o Exército é chamado a atuar nos estados em meio a motins de policiais ou crises na segurança.
Antes da eleição de Bolsonaro, despertaram controvérsias declarações do atual vice-presidente, Hamilton Mourão, que é general da reserva, sobre o papel constitucional dos militares.
“Como é que a gente [militares] garante os poderes constitucionais? Mantendo a estabilidade? E, se um Poder não consegue mais cumprir a sua finalidade, o que nós fazemos? Então, é uma discussão que nós temos tido ao longo dos tempos, porque está escrito na Constituição”, disse Mourão em 2018, ainda como candidato.
Nas últimas semanas, após atos pedindo intervenção militar, o Ministério da Defesa divulgou notas reafirmando seus compromissos com a Constituição, mas sem condenar as manifestações antidemocráticas.
Para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, que pesquisa a ditadura e as Forças Armadas, a formulação expressa na Constituição era “totalmente não negociável” para os militares na época.
“Em outros países, só em situações muito excepcionais, dramáticas, como catástrofes, há o eventual recurso a militares para auxiliar forças de segurança, por iniciativas humanitárias. Aqui no Brasil, virou uma coisa corriqueira, banal”, diz.
“O problema é que o artigo do jeito que está, em sua conjuntura histórica em que se insere, passou a ser interpretado dessa maneira autoritária. É muito negativo que não se tenha superado essa fragilidade toda”, completa.