Estudantes das favelas ficaram sem estudo nenhum
Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Mais da metade (55%) dos estudantes de favelas do Brasil estão sem estudar durante a pandemia. Parte (34%) não consegue participar por falta de acesso à internet, e outra parcela (21%) não está recebendo as atividades da escola ou faculdade na qual está matriculada.
A informação é de uma pesquisa obtida com exclusividade pelo GLOBO e realizada pelo instituto DataFavela, uma parceria entre o Instituto de Pesquisa Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa). O levantamento ouviu 3.585 alunos, universitários e pais de estudantes de comunidades de todo o país, entre 9 e 10 de setembro.
— A desigualdade de educação, que é uma das causas estruturais da desigualdade econômica, tende a se aprofundar. É um dado que me preocupa — afirma Renato Meirelles, presidente do Locomotiva.
Ainda segundo o estudo, os principais motivos que afastam alunos de favelas de atividades educacionais remotas são a falta de local adequado de estudo, que seja sem barulho e permita concentração; má conexão com a internet e ausência de dispositivos adequados; e a distância dos professores.
“Alunos se queixam da falta dos espaços para debates, discussões e dúvidas — e reclamam que gastam muito mais tempo para ouvir os conteúdos ou respostas a dúvidas”, afirma o trabalho.
Na casa de Suellen Pires, de 28 anos, ela precisou escolher comprar comida a ter crédito no celular. Trancista que faz bicos vendendo empadas e cocadas, a moradora da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, não pôde trabalhar durante a pandemia. De renda, teve só o Bolsa Família (R$ 345 mensais), já que não conseguiu acessar o auxílio emergencial. Por isso, as irmãs Geovanna e Gabrielle do Nascimento, de 9 e 11 anos, ficaram de março a outubro sem estudar.
— A minha casa é muito úmida. Eu e uma das minhas filhas já tivemos tuberculose e, por isso, ficamos com problemas pulmonares. Então sou de risco e fiquei em casa durante a pandemia para me proteger e proteger minhas filhas — conta Suellen.
Sem poder receber as crianças presencialmente, a escola das meninas, o Ciep Vila Kennedy, adotou o ensino remoto com o envio de um link para os pais dos alunos com os conteúdos da semana. Sem crédito no celular, Suellen não conseguia acessar o material. Em outubro, ela ganhou um chip do Alô Social, uma campanha da Cufa que arrecadou e distribuiu 500 mil chips de celular em quase 5 mil favelas assistidas pela organização em todo o Brasil. Eles foram entregues para mães, como Suellen, que poderiam rotear a conectividade para outros aparelhos.
Mas na casa da moradora da Vila Kennedy não era possível rotear. Lá só tem um celular para todo mundo. Por isso, a chefe de família — que mora com mais uma filha e a irmã, desempregada — recebe o material, copia no caderno e se senta com as filhas pra estudar.
— A minha de 9 anos é muito esperta. Tenho medo de, por causa do ano perdido, ela ter dificuldade na volta. Já a mais velha tem dificuldades e está fazendo o 3º ano pela segunda vez. Ela só consegue estudar com minha ajuda — diz Suellen. — E a hora do estudo é hora séria, igual refeição. Elas têm que prestar atenção. Mas a gente não tem a paciência igual a professora, que até me ajuda muito pelo celular. Não é a mesma coisa que na escola.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Catarina Santos afirma que, quando for possível o retorno às escolas com segurança, as redes vão precisar reorganizar os currículos para recuperar a aprendizagem dessas crianças que ficaram tanto tempo afastadas da escola e até aquelas que acompanharam as aulas remotas, mas não aprenderam o necessário.
— É preciso fazer uma avaliação diagnóstica para saber o que precisa ser recuperado. Com o diagnóstico de cada criança, tem que pensar uma ação necessária para cada escola. Pode ser, por exemplo, períodos de calendário letivo que não precisam estar vinculados a um ano, mas em etapas de desenvolvimento para que elas aprendam o que é essencial do ano que o aluno estava matriculado na pandemia antes de passar para o seguinte — explica a especialista. — O que não dá é para fazer de conta que nada aconteceu e não pensar um programa de recuperação especial.
Celso Athayde, presidente da Cufa, afirma que crianças nas favelas têm sempre maior risco de evasão. Pais presentes, diz ele, minimizam isso. No entanto, ele alerta, esse é um momento de dificuldades acumuladas — crise financeira, pandemia, desesperança, entre outras — que podem tirar o foco da família em relação aos estudos de seus filhos.
— Chega um ponto que a pandemia parece não ter fim, e essas pessoas começam a ver o mundo como algo que está acabando. E isso se reflete nos filhos. Tem extrato da sociedade que estuda para ser patrão. Na favela, é estudar para ser um bom empregado — diz.
A pesquisa do DataFavela ainda captou um sentimento de angústia que perpassa pelos moradores das comunidades durante a pandemia: 75% dos pais e mães de alunos sentem muito medo da possibilidade de seus filhos perderem o ano; 47% dos estudantes temem querer desistir da escola se não conseguirem acompanhar as aulas remotas; 71% dos pais se sentem muito inseguros em mandar as crianças de volta para a escola presencialmente; e 90% acreditam que as escolas não vão estar preparadas para um retorno seguro.
— Esse medo é uma tônica do território. A favela convive com o medo sempre — diz Athayde. — Na pandemia, o favelado tem a convicção de que não vai ter atendimento médico adequado para se tratar. Esse cara não tem plano de saúde para recorrer.
Já Meirelles afirma que o país precisa intensificar estratégias como a obrigatoriedade de matrícula dos filhos para a garantia de acesso a programas de renda, como o Bolsa Família, com o objetivo de garantir que as crianças e adolescentes não abandonem as salas de aulas do país.
A pesquisa identificou ainda uma “centralidade quase exclusiva do celular como meio de acesso à internet entre crianças e adolescentes das classes populares”. Segundo o estudo, isso tem impactos na sua situação de exclusão.
O estudo cita o levantamento TIC Kids Online Brasil, de 2019, que mostra que 1% das crianças e jovens de 9 a 17 das classes D e E só tem acesso à internet pelo computador; 73%, pelo celular; e 20% em ambos equipamentos. Já nas classes A e B, esses percentuais são invertidos: respectivamente, 1%, 25% e 74%.
O estudo da Locomotiva e da Cufa lista problemas em depender apenas do celular. Segundo eles, nem todos os modelos de smartphone têm boa capacidade de processamento de dados e alguns desses territórios sofrem com sinal de internet de má qualidade.
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