Direita se une pelo direito de difundir notícias falsas
Articulistas e ativistas de diversas correntes da direita se uniram para atacar a nova iniciativa do Facebook que pretende reduzir o alcance na plataforma de matérias contendo notícias verificadas, consideradas falsas.
Os ativistas argumentam que as agências que vão fazer a verificação das notícias para o Facebook são compostas quase exclusivamente por jornalistas de “extrema esquerda”. Argumentam também que esses jornalistas, com a alegação de combater notícias falsas, estariam tentando reduzir o alcance da direita no Facebook, impondo uma espécie de censura.
O argumento se baseia num grande dossiê que circula nos meios de direita com o perfil ideológico dos 36 jornalistas vinculados a essas agências e que conta com informações pessoais e um apanhado das suas publicações nas redes sociais. Vários dos jornalistas identificados no dossiê sofreram agressões verbais e ameaças na última semana.
A iniciativa do Facebook busca verificar notícias denunciadas na plataforma como falsas e, caso a verificação confirme a denúncia, reduzir o número de pessoas que receberão a notícia –no jargão do Facebook, reduzir seu “alcance orgânico”.
Nos Estados Unidos, país no qual o programa foi lançado há mais tempo, houve redução de cerca de 80% no alcance das matérias que foram consideradas comprovadamente falsas. Uma vez identificadas como falsas, as matérias também não podem ser impulsionadas, isto é, não conseguirão ampliar o seu alcance por meio de pagamento ao Facebook para chegar a mais usuários.
A verificação será feita por agências filiadas a “International Fact-Checking Network” que estabelece os princípios internacionalmente aceitos para a verificação que incluem o compromisso com o não partidarismo, a transparência das fontes, a transparência do financiamento, a adoção de uma metodologia pública e a abertura a correções.
Todas as agências filiadas recebem uma auditoria anual para verificar se estão cumprindo esses princípios. Hoje, três agências de verificação brasileiras são filiadas a rede e duas delas, a Lupa e a Aos Fatos se associaram ao Facebook para fazer a verificação das notícias que circulam na plataforma.
É preciso destacar que a iniciativa não busca avaliar a opinião política, mas apenas aferir a correção factual do que é noticiado.
A lista das matérias já verificadas nos primeiros dias da parceria do Facebook com as agências mostra o tipo de conteúdo cujo alcance está sendo limitado. Trata-se, por exemplo, de uma matéria falsa do site The Folha (sem qualquer relação com a Folha de S.Paulo) com mais de 37 mil compartilhamentos que dizia que a Lava Jato pode banir o PT, o PMDB e o PP, ou ainda outra, do site Top Five TV, com mais de 25 mil compartilhamentos que dizia que a apresentadora Fátima Bernardes teria pago reforma para a casa do assaltante morto por uma policial na porta de uma escola em São Paulo, outra do site Saúde, Vida e Família, com mais de 4 mil compartilhamentos, que dizia que Cármen Lucia e Raquel Dodge tinham pedido a prisão imediata da presidente do PT Gleisi Hoffmann ou outra, dos sites Notícias Brasil Online e Jornal da Cidade Online, com mais de 141 mil compartilhamentos, que dizia que militares estariam, sem aviso prévio, fiscalizando as atividades do Senado.
Nos quatro casos citados acima (e noutros que podem ser conferidos nos sites das agências Lupa e Aos fatos, não se trata de opinião política, mas de fatos comprovadamente falsos: o Ministério Público não está pedindo o banimento de partidos, Fátima Bernardes não pagou uma reforma na casa do assaltante, Gleisi Hoffmann não teve a prisão decretada e militares não estão fiscalizando as atividades do Senado.
É pelo direito de notícias como essas circularem com todo o alcance, chegando a milhões de pessoas que os ativistas de direita estão se levantando? Ou será que esses grupos políticos têm medo da fábrica de mentiras da direita ser afetada em plena véspera do período eleitoral?
Nos meios de direita, circula um dossiê de 300 páginas com informações de jornalistas que trabalham para as três agências de verificação. O único argumento utilizado pelo dossiê é que os jornalistas seriam, na sua maioria, de “extrema esquerda”, termo utilizado pelos grupos próximos ao MBL para se referir a quem discorda das suas opiniões. Como disse Luciano Ayan, num recente encontro municipal do MBL, chamar o adversário de “extrema esquerda” faz parte dos expedientes que devem ser utilizados numa “guerra política” para que o inimigo seja visto como um extremista.
Pelo menos num sentido a estratégia articulada de armar uma “guerra política” contra a verificação de notícias tem dado certo: se ela não foi capaz de mudar a política do Facebook, pelo menos os jornalistas das agências têm se sentido como alvo de uma campanha de guerra.
Vários dos verificadores nomeados no dossiê receberam mensagens de agressão ou ameaças nas mídias sociais. O jornalista Sérgio Spagnuolo, do Aos Fatos, viu informações pessoais da sua esposa expostas numa publicação denunciando “militantes pró-aborto, ideologia de gênero e vilipêndio” que teriam sido contratados pelo Facebook para “censurar posts e páginas”. O jornalista Leonardo Sakamoto, do UOL, foi agredido na rua e uma velha notícia falsa a seu respeito, dizendo que, segundo ele, aposentados “deviam se destinar a instituições de reciclagem” voltou ao ar e teve mais de 14 mil compartilhamentos.
Nas colunas de opinião, quase todos os articulistas de direita se levantaram contra a verificação de conteúdo falso pelo Facebook.
Em sua coluna na Gazeta do Povo, o articulista Rodrigo Constantino disse que “o Facebook implementa regras propositalmente vagas sobre ‘censura a conteúdo’; a empresa contrata preferencialmente pessoas de extrema esquerda ou faz parcerias com essas organizações; os ‘jornalistas’ fazem textos contínuos denunciando as ‘fake news’ ou ‘crimes de ódio’ que, segundo eles, teriam sido cometidos por direitistas; o Facebook utiliza esse material como pretexto para censura.”
Também na Gazeta do Povo, Flavio Gordon disse que “essas agências de fact-checking, longe de instituições ideologicamente neutras, são, ao contrário, agentes políticos de destaque no cenário global contemporâneo. Junto aos conglomerados tradicionais de mídia, elas integram uma grande reação epistocrata à livre circulação de ideias em seus respectivos países, que, nos últimos anos, graças à internet, pôs em xeque o monopólio de informação exercido pela grande imprensa, cada vez menos diversa em termos de visão de mundo.”
Alan Ghani, no Infomoney, disse que “o controle de informação dá um poder extraordinário para algumas pessoas sobre os demais, colocando em risco a liberdade de expressão e a própria democracia. Afinal que legitimidade estas pessoas terão para dizer o que é verdade ou não?”.
O diretor do Instituto Liberal, Alexandre Borges, disse, em publicação no Facebook, que “fake checkers de esquerda [foram] oficialmente alistados para censurar notícias. Isso é muito mais grave do que vocês podem imaginar. É o Big Brother Orwelliano em ação.”
O curioso é que tudo que os articulistas de direita tem dito contra a verificação de notícias falsas é uma sucessão de argumentos ad hominem: que os jornalistas são de extrema-esquerda, que o Facebook é progressista e que as agências de verificação são financiadas pelo esquerdista George Soros e que, portanto, a diminuição do alcance dos compartilhamentos é censura e um risco à liberdade de expressão.
Eles têm, no entanto, um bom argumento a seu favor. De fato, é preocupante que uma empresa privada que controla o segundo principal meio de informação dos brasileiros tenha o poder de decidir o que pode e o que não pode ser dito e de determinar –mesmo com bons critérios– o que vai ter maior ou menor alcance no debate público.
É o tipo de regulação privada previsto pelo jurista americano Lawrence Lessig que criou a máxima “o código é a lei” para se referir a uma espécie de capacidade legislativa de quem controla o código dos programas que utilizamos.
Para contrabalançar esse poder das empresas privadas, que não precisam responder à cidadania, Lessig recomendava uma regulação pública eficaz.
Esse é o tipo de argumento que não esperamos de liberais, mas daqueles que defendem a capacidade regulatória do Estado para proteger a sociedade do excesso de poder das empresas.
Por Pablo Ortellado para a Folha