Bolsonaro conseguiu pôr apoiadores numa bolha, diz especialista
Foto: Alan Santos/Palácio do Planalto
O presidente Jair Bolsonaro ficou mais forte para alguns após as ameaças explícitas à democracia nos atos de 7 setembro. E ficou mais fraco na visão de outra parcela do eleitorado, que depois até ironizou o socorro recebido do ex-presidente Michel Temer no esforço de parecer moderado.
Essa é a avaliação do cientista político Humberto Dantas, entrevistado na “Live” do Valor. “Tenho que ele ficou mais bipolar aos olhos da sociedade”, sintetizou.
No balanço dos atos, o total de apoiadores nas ruas talvez tenha sido menor do que bolsonaristas projetavam. “Mas ele conseguiu tirar uma foto [da multidão] para dialogar com os demais Poderes.”
“Bolsonaro é um fenômeno que tem conseguido isolar seu eleitorado, de maneira extremamente bem-sucedida, num universo de narrativas, interpretações e valores próprios”, disse. “E esse universo está blindado numa bolha de informações que circulam à margem do que a grande imprensa e até canais oficiais de comunicação veiculam.”
Na avaliação de Dantas, um presidente ter consigo acima de 20% de aprovação “sob uma narrativa intensa e bem articulada” mostra que ele possui “uma capacidade de mobilização gigantesca. Ainda que seja insuficiente para garantir a reeleição, está longe de ser pouco. “Pesquisas antigas mostraram que o Flamengo é o time preferido por cerca de 20% a 25% dos brasileiros. O eleitorado dele tem o tamanho da torcida do Flamengo. Nada desprezível”, diz.
O saldo mais concreto do dia 7, em sua opinião, foi ter deixado claro que a democracia está deixando de ser um valor universal. “Bolsonaro não só faz discursos a uma parcela que ele consegue mobilizar, mas seus discursos afrontam valores de um Estado que se pretende ou se imaginava democrático”, acusou.
Dantas demonstrou ceticismo em relação à ideia segundo a qual as ameaças autoritárias de Bolsonaro seriam um blefe.
“Não faria discursos dessa natureza, golpistas, se não tivesse convicção. Porque isso é a história dele no Parlamento. Foram 30 ano falando escancaradamente em ruptura, a ponto de chegar a sugerir que o então presidente Fernando Henrique deveria ter sido morto pela ditadura.”
O cientista político lembrou ainda que há uma parcela da sociedade que não se envergonha de defender ideias golpistas. “Democracia começa a deixar de ser vista como valor universal”.
Nesse sentido, prosseguiu, “Bolsonaro é o que de mais comum poderia acontecer na sociedade brasileira, pois Bolsonaro é o que existe de mais comum no cotidiano brasileiro”. O comportamento dele, disse, reproduz o sentimento de cerca de 25% ou 30% dos brasileiros. “Em termos de valores pessoais, Bolsonaro é mais do mesmo. Uma repetição do caráter de parcelas significativas da sociedade.”
Para ilustrar a hipótese segundo a qual a democracia pode nunca ter sido um valor universal no país, Dantas citou a aceitação, sem questionamento, da ideia de que os anos 80 teriam sido “a década perdida”. A despeito dos profundos problemas econômicos, foi “a década de ouro da democracia”, com Diretas Já, Constituição e volta de eleições diretas para presidente, aspectos que jamais poderiam ser desprezados na caracterização do período.
Para o pesquisador, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva “também é um espelho bastante fiel do caráter dessa sociedade”.
O petista assemelha-se a Bolsonaro, disse, na forma como se constrói como liderança: “Indivíduos que se abraçam em leituras da realidade que não podem ser afrontadas”, definiu. Ressaltando que vê Lula como figura bem menos radical que Bolsonaro, citou como exemplo desse traço o hábito do petista de abusar da expressão “nunca antes na história desse país”, algo “muito ruim do ponto de vista da narrativa republicana.”
Doutor em ciência política pela USP, Dantas é gestor de educação do Centro de Liderança Pública e coordenador de pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
A entrevista foi conduzida pelo jornalista César Felício, editor de Política do Valor.
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