Como qualquer traficante
Dos descaminhos pelos quais o Brasil se perdeu durante a ditadura militar, hipocrisia foi possivelmente o mais tortuoso. Contrastando com o moralismo compulsório de ditadores que vetavam obras artísticas por dizerem-nas atentatórias aos “valores da família” ou subversoras da ordem política e social, nas comunas dos beneficiários da usurpação militar os próprios usurpadores se entregavam aos vícios que diziam combater.
O rapaz forte e de lábios grossos dos quais saía uma voz verdadeiramente tonitruante costumava chegar chegando aos barzinhos do Gemini, na avenida Paulista, nos idos dos anos 1970. Freava bruscamente o seu carro – um buggy, se bem me lembro –, que mais parecia um trio-elétrico dado o volume do som que dele emanava. Em geral, largava o veículo em fila dupla, congestionando o trânsito da Alameda Joaquim Eugênio de Lima.
Era temido e bajulado por duas razões fundamentais: além de ser faixa-preta de caratê – creio eu, ou de qualquer outra arte marcial –, era filho de general, o que lhe permitia se livrar das ameaças de prisão que colecionava em suas noitadas, incursões pela noite paulistana nas quais, usando o nome do pai, demovia a polícia de fazer o seu trabalho de impedir aquele que se convertera em legítima ameaça ambulante.
Nos anos seguintes, porém, à medida que a cocaína lhe destruía a saúde física e mental, foi se tornando menos truculento e mais decadente, ao ponto em que, na última vez em que o vi, tornara-se uma figura patética, abatida, esquálida, que, vez por outra, vendia o veneno que consumia de forma a sustentar o próprio vício, pois a família, agora desalentada com os efeitos da liberdade que lhe outorgara, finalmente decidira não lhe financiar mais a derrocada.
Certa feita, quando chegou caminhando aos barzinhos – em vez de dirigindo, pois já cheirara o último carro que lhe dera a família, além de uma casa na praia e muitos itens de sua residência –, vendo que agora só representava risco a si mesmo e àqueles aos quais vendia seu veneno criei coragem para perguntar, não sobre os abusos que cometera no passado, mas se não tinha crise de consciência por vender droga.
Seu argumento para justificar o fato de que não tinha crises de consciência por eventualmente vender droga era o de que não obrigava ninguém a comprar substância que se convertera em sua filosofia e até mesmo em seu meio de vida, em certos momentos. Da forma como dizia, o pensamento parecia fazer sentido…
Lembrei-me desses fatos ao ler a resposta da Globo à recente nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que condenou os “reality shows” em recado claramente endereçado ao Big Brother Brasil. Leiam, abaixo, se não é o mesmo discurso daquela pobre alma que traficava drogas, daquela vítima dos que subjugaram este país brandindo valores que não adotavam para si ou suas famílias.
“A Rede Globo é uma emissora laica, com uma visão de cultura e mesmo de comportamento social e moral que não segue preceitos religiosos. Temos tradição de estar, no campo institucional, ao lado da maioria das causas da CNBB. No que nos refere, somos gratos pelo reconhecimento do papel positivo que a televisão aberta e privada desempenha no Brasil e concordamos que cabe aos pais selecionar o que seus filhos devem assistir – como tudo que pode influenciar na formação dos jovens.
O telespectador é o mesmo cidadão-eleitor que, a cada momento, tem plena liberdade de decidir o que é melhor para si e sua família”