Golpista de 1964 acabou pedindo democracia
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“Assim como o aliado de hoje pode ser o inimigo de amanhã, o inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje”. Quem disse essa frase? Dica: um político de expressão nacional, dono de uma oratória ímpar e no contexto da criação de uma Frente Ampla em defesa da democracia. Este político convidou antigos adversários para dar corpo ao movimento, e reuniu lideranças de todos os matizes, imbuídos da missão de lutar pela realização de eleições livres e gerais no Brasil.
A declaração e o movimento político descritos no parágrafo anterior ressoam atuais. Dialogam com a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, que será lida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no dia 11 de agosto, e que já reuniu mais de 600 mil assinaturas, contando com adesões de empresários, banqueiros, artistas, advogados, jornalistas e demais representantes da sociedade civil. “Independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos as brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições”, diz um trecho do documento.
Já a afirmação de que o “inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje” poderia ser atribuída ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que transformou o ex-adversário Geraldo Alckmin em aliado e candidato a vice na chapa pela qual concorrerá à Presidência.
Essa frase, todavia, não é atual, mas é histórica. Foi dita há 56 anos pelo então ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, uma das principais lideranças da União Democrática Nacional (UDN), em uma entrevista à revista Manchete. Em 1966, em reação ao Ato Institucional (AI) 2, que suspendeu a realização de eleições no Brasil, Lacerda arregimentou ex-adversários como Juscelino Kubitschek e João Goulart para se unirem contra a ditadura militar. Lacerda e Juscelino eram favoritos na sucessão presidencial de 1965 – que em razão da ditadura de 21 anos, não ocorreu.
Com o golpe militar de 1964, Juscelino seguiu para o exílio em Lisboa. Como Lacerda apoiou o ato, alinhando-se aos generais, ele foi preservado no cargo de governador. Lacerda acreditava que o regime militar seria transitório e ele concorreria à Presidência no ano seguinte, com o apoio da caserna.
Lacerda somente rompeu com os militares após a suspensão das eleições. A Frente Ampla arquitetada por ele consumou-se com a publicação de um documento no jornal Tribuna da Imprensa, do qual ele havia sido sócio, em outubro de 1966, reivindicando a realização de eleições diretas gerais, reforma partidária, desenvolvimento econômico e uma política externa soberana. A frente ficou em atividade até início de 1968, quando foi extinta pelos militares. No fim do mesmo ano, com o AI-5, Lacerda foi preso e teve os direitos políticos cassados. Em 1977, após um infarto, foi enterrado com o sonho de concorrer à Presidência.
Apesar das semelhanças com a Frente Ampla que Lula tenta articular em torno de sua candidatura e do movimento suprapartidário em defesa da democracia que está em campo, a memória de Carlos Lacerda foi resgatada justamente por um aliado do presidente Jair Bolsonaro, que tem contestado o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.
Há uma semana, na convenção nacional do Progressistas (PP), que confirmou o apoio da legenda à reeleição do presidente, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira reverenciou o líder da UDN. “De vez em quando, leio alguns discursos de um ex-governador do seu Estado, grande conservador, chamado Carlos Lacerda”, afirmou, dirigindo-se a Bolsonaro.
Segundo Nogueira, nos últimos tempos, os brasileiros tinham receio de assumir o perfil “mais conservador”, mas graças a Bolsonaro, o brasileiro hoje teria orgulho de se declarar “de direita”, ou “conservador”.
Sem dúvida, Lacerda entrou para a história como um dos políticos de maior expressão da direita brasileira, embora no início da sua trajetória tenha flertado com o comunismo. Os últimos anos como democrata de ocasião contradizem seu histórico de apoiador do golpe militar de 1964.
De inteligência rara e oratória inflamada, como jornalista, foi um dos primeiros a explorar a televisão na década de 1950. Lacerda seria sem dúvida inspiração para Bolsonaro. Em tempos em que as redes sociais eram ficção científica, o político agarrava-se a um telefone de fio, pelo qual respondia a perguntas dos telespectadores da TV Tupi, enquanto propalava denúncias contra o presidente Getúlio Vargas e os comunistas.
Em 1965, antes de romper com os militares, Lacerda criticou os ministros do Supremo Tribunal Federal, que libertaram o ex-governador Miguel Arraes, considerado um subversivo. “São criminosos que se arvoram em juízes”, sibilou.
Opositor empedernido de Vargas, ocupava rádio e televisão com ameaças ao adversário na campanha de 1950. “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”, bradava.
Em 5 de agosto de 1954, foi alvo do atentado da Rua Tonelero, episódio catalisador do ato trágico do presidente, que deu cabo da própria vida, 19 dias depois.
Pela oposição veemente e discursos incendiários, ganhou da imprensa adversária, capitaneada por Samuel Wainer, o sugestivo apelido de “O Corvo”. Após a morte de Vargas, voltou à carga contra Juscelino e seu candidato a vice, João Goulart, eleitos no pleito de 1955, cobrando intervenção militar. Mas o “contragolpe” orquestrado pelo General Henrique Teixeira Lott assegurou a posse de JK e Jango em 1956.
Ciro Nogueira exaltou o conservadorismo de Lacerda. Mas pelo papel desempenhado a partir de 1966, é de se supor que Lacerda subscreveria a carta democrática, tão criticada pelo governo. É o passado dando lições de vida ao presente.