Lula e Haddad apostam na periferia paulistana
Foto: Maria Isabel Oliveira
Em São Paulo desde 2005, a baiana Zilma Souza, de 42 anos, abriu este mês um ponto de venda de acarajés em Perus, na periferia da Zona Norte da capital paulista. Antes, preparava os quitutes na cozinha de casa e os vendia por delivery. Agora a preocupação com o custo dos ingredientes ficou ainda maior.
— O azeite de dendê aumentou muito, o feijão também. Reajustei o preço do acarajé e terei que vender mais (pra ganhar o mesmo) — afirma. — Colegas estão fechando as portas de suas lojinhas. Por isso mudei meu voto.
Zizi, como é chamada pelos clientes, trocou Jair Bolsonaro (PL) pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no primeiro e, diz, segundo turnos deste ano. Ela não foi a única. Em 2018, na zona eleitoral de Perus, no extremo noroeste da capital, Bolsonaro venceu o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) por pouco mais de 4 mil votos (52% a 48%). Quatro anos depois, Lula abriu 32 mil votos de frente (55% a 34%). Lá, Dilma venceu Aécio no segundo turno de 2014 por menos de 300 votos, um dos poucos endereços do chamado cinturão vermelho mantidos pelo PT à época (o tucano teve 64,3% dos votos válidos na capital).
Embora tenham ficado atrás, respectivamente, de Bolsonaro e do ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos) no interior e no cômputo geral no estado, Lula e Haddad foram os mais votados na capital no último dia 2. A esquerda abriu a maior vantagem nas periferias de São Paulo nas eleições para presidente desde a primeira eleição após as manifestações de 2013 (veja mapas abaixo) e aposta em aumentá-la no dia 30 para compensar o imenso favoritismo de Tarcísio no interior.
Para o governo do estado, a exceção neste período foi em 2018, quando Márcio Franca (PSB), de centro-esquerda, venceu João Doria (PSDB) nos extremos Sul e Leste da capital no segundo turno em uma eleição disputada. Em 2014 Geraldo Alckmin (PSDB) venceu com folga no primeiro turno. O ex-ministro Alexandre Padilha (PT) só venceu em quatro zonas eleitorais nas periferias (Guaianazes, Grajaú, Parelheiros e Cidade Tiradentes).
Quatro anos depois, com os palácios do Planalto e dos Bandeirantes sendo disputados voto a voto, o universo de cerca de 5,6 milhões de votos é um dos grandes prêmios da eleição deste domingo.
A mais recente pesquisa do Ipec para o governo estadual, divulgada na terça-feira, trouxe Tarcísio com 46% da intenção dos votos no estado, contra 43% de Haddad, empatados na margem de erro. Um dos avanços do petista em relação à consulta anterior do instituto foi justamente sobre a parcela mais pobre do eleitorado, subindo de 39% para 47% entre aqueles com renda familiar mensal de 1 a 2 salários mínimos.
Nas esquinas de São Paulo, o avanço à esquerda também pôde ser constatado na votação do segundo deputado federal mais votado do país, Guilherme Boulos (PSOL), cotado para disputar a prefeitura em 2024. Foi lá que ele recebeu o grosso de seus mais de 1 milhão de votos.
— O bolsonarismo perdeu espaço em toda a região metropolitana de São Paulo, não apenas em suas bordas. Mas foi nas periferias que a piora das condições de vida, com o aumento da inflação dos alimentos e da fome, se mostrou especialmente significativa para a migração de votos — aponta Raquel Rolnik, uma das coordenadoras do LabCidade da USP.
O metalúrgico aposentado José da Silva Neto, 72, que, assim como Zizi, vive em Perus, conta que o dinheiro cada vez mais curto no fim do mês foi sim decisivo para a mudança de voto. Mas não só.
— Pensava que Bolsonaro era uma coisa, está sendo bem outra. É um homem grosseiro, que não se comporta como autoridade, fala palavrões e dizia que a pandemia de Covid-19 era uma gripezinha mas muita gente aqui morreu — diz.
Seu José é representação viva do que os mapas ilustram: votou no PT anteriormente, optou por Bolsonaro em 2018 “pois acreditei que combateria a corrupção” e retornou a Lula este ano.
— Desde a votação do mensalão, registra-se um ‘cansaço’ com o PT nas periferias de São Paulo, onde o partido sempre foi forte — diz a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) — Entre as principais hipóteses para o voto de protesto ter migrado este ano para o outro lado estão a falta de mobilidade social nestas áreas durante o governo Bolsonaro e a falácia, para seus moradores, do discurso da meritocracia, central para a narrativa bolsonarista.
O retorno das periferias paulistanas ao PT, pode, no entanto, conter armadilhas, diz a especialista:
— É um erro olhar para o mapa do dia 30 e cravar que o PT voltou a ser hegemônico nas periferias paulistanas. Os números revelam menos uma demonstração de entusiasmo lulista e mais um voto resignado e anti-bolsonarista. Não será surpresa se ele não se repetir de forma idêntica no segundo turno, que pode registrar mais abstenção (de acordo com o TSE, as periferias tiveram a maior presença de eleitores na capital no primeiro turno), e no futuro próximo. A militância bolsonarista está e continuará presente nas periferias nos próximos anos.
Um dos endereços em que Bolsonaro bisou a vitória este ano foi Vila Formosa, na Zona Leste, dentro da chamada ‘periferia consolidada’, de perfil socioeconômico mais alto do que a média dos extremos da cidade. Lá ele teve 71,3% em 2018 e 55,4% dos votos este ano. A presidente da associação de moradores do bairro, Silvia Machado, 69, é uma entusiasta:
—Vila Formosa é conservadora, muitas pessoas aqui foram nas manifestações de apoio a Bolsonaro na Avenida Paulista este ano e empunham a bandeira da defesa da família, da proibição do aborto e contra a ‘liberação’ das drogas.
Em nota, curiosamente, a campanha de Tarcísio de Freitas não trata da pauta de costumes conservadora nem da militância de pastores e fiéis das igrejas evangélicas nas periferias, mas destaca, entre suas prioridades para as periferias, o aumento na oferta de moradia (um dos pontos centrais da campanha de Boulos, provável candidato das esquerdas à prefeitura em 2024) e a ampliação de linhas de microcrédito voltadas para o empreendedorismo feminino, mirando no voto de eleitoras como dona Zizi, de Perus.
Com base eleitoral na Zona Leste, o deputado estadual reeleito Gil Diniz (PL), conhecido como ‘carteiro reaça’, pondera que a disputa este ano foi singular e que a direita não se preparou para enfrentar Lula, “adversário mais forte do que Haddad em 2018”:
— Faltou presença física mais constante e engajada nas periferias, onde a mobilização de rua ainda é o método eleitoral mais eficaz. Nossas ideias não chegaram aos moradores com a mesma força e constância que os ataques dos adversários.
O corpo a corpo foi um central na estratégia petista. Coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP), o piauiense Raimundo Bonfim milita para o PT nas periferias de São Paulo desde o governo Luiza Erundina (1989-91). Nos últimos três meses, conta, as Brigadas de Agitação e Propaganda, formada por grupos de 10 a 15 voluntários em sua maioria oriundos de movimentos sociais, bateram em milhares de casas das periferias paulistanas. Em Heliópolis, na Zona Sul, ele próprio se reúne, desde então, três vezes por semana com moradores. Na zona eleitoral que inclui o Ipiranga e a maior favela de São Paulo, Lula venceu Bolsonaro (45% a 39%).
— Para enfrentar pela primeira vez a extrema-direita organizada, o vira-voto foi de casa a casa. E nos beneficiamos da mobilização feita após os protestos de 2021 contra Bolsonaro e das ações de solidariedade durante a pandemia. Os grupos feministas e antirracistas renovaram os movimentos sociais nas periferias — conta.
Deputada estadual reeleita pelo PSOL em mandato coletivo, Monica Seixas destaca o aumento da capacidade de auto-organização como peça importante na disputa dos votos nas periferias da metrópole. O Movimento Pretas, do qual faz parte, milita em sete áreas dos extremos da cidade e seu campo de visão, diz, ultrapassa o horizonte possível nos tempos em que sindicatos e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) plantaram as sementes do velho “cinturão vermelho”.
— Há os jovens que produzem na internet, conseguiram ir à universidade, têm pensamento crítico e se organizam nas escolas de teatro, no Fluxo do Funk, no Slam, nos cursinhos comunitários daqui, interessados em transformar uma realidade que sabem ser extremamente desigual — diz, para concluir: — Mas também seguem com força os que abraçam a lógica conservadora de que cota é esmola e se veem como ‘cidadãos de bem’, moralmente superiores aos vizinhos.
Estas duas narrativas identitárias, aposta Seixas, guiarão, tanto ou mais que a fome e a inflação sufocante, a disputa pelo voto nos próximos anos nas periferias paulistanas.