Discursos de Bolsonaro podem colocar Brasil na mira da ONU
Para o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, discursos e propostas do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e dos governadores eleitos de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), são ameaças claras aos direitos humanos e, se concretizadas, devem colocar de vez o Brasil na mira da comunidade internacional, especialmente da ONU e da OEA.
Ex-integrante da Comissão da Verdade, que investigou crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, Dias, 79, tem longa trajetória como advogado criminalista e ocupou, entre 1999 e 2000, o cargo de ministro durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Antes, entre 1983 e 1986, foi secretário estadual de Justiça e Direitos do Cidadão, em São Paulo, no governo Franco Montoro (PMDB).
“Sou muito pessimista. Infelizmente, acho que o desrespeito aos direitos humanos, que hoje já existe, vai aumentar [no governo Bolsonaro].”
Na opinião do ex-ministro, um cenário de mais violações levará a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos) a ter “uma atuação de pressão sobre o Brasil” para fazer com que o país “respeite normas e os direitos humanos”.
Representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA fizeram neste mês uma visita para avaliar a situação do país. A conclusão principal dos observadores é que o Brasil já vive um retrocesso nos direitos humanos.
Relatora do órgão para o Brasil, a chilena Antonia Urrejola Noguera afirmou ao UOL, no começo do mês, que organismos internacionais têm recebido uma quantidade maior de denúncias de violações de direitos no país.
Em relação ao futuro governo, José Carlos Dias demonstra preocupação, por exemplo, com a proposta de Bolsonaro de acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias de presos. “Prender e deixar preso”, afirma o plano de governo do presidente eleito.
“Indiscutivelmente, isso agravará a situação nos presídios porque vai provocar uma inquietação dentro do sistema [prisional] que é muito perigosa.”
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo – eram 726 mil pessoas privadas de liberdade em 2016, de acordo com o governo federal. “O que teria que se resolver é o problema absurdo de que em torno de 40% dos presos ainda não foram julgados. Pessoas que podem ser inocentes são mantidas presas, sem julgamento. A demora no julgamento dos processos é muito séria, é um problema a ser enfrentado pelo Judiciário, com apoio do Executivo”, declara Dias.
“A progressão da pena é o caminho normal que sempre existiu e não tem por que deixar de existir. Você tem que ver o comportamento do preso, não importa o crime. Se ele já recebeu uma pena, vamos estimulá-lo para que ele conquiste a progressão por seu comportamento”, argumenta o ex-ministro.
O tema foi citado no relatório preliminar da Comissão de Direitos Humanos da OEA. As recomendações do órgão contrariam propostas do presidente eleito. A comissão recomenda a adoção de medidas para reduzir a superlotação em presídios, a aplicação de penas alternativas e o “estabelecimento de mecanismos permanentes de revisão da execução das sentenças” para promover a aplicação dos benefícios da progressão de pena dos condenados.
José Carlos Dias também relata apreensão com declarações de Witzel e Doria. O governador eleito do Rio falou em procurar atiradores de elite para “abater criminosos”. E o tucano, eleito para o governo de São Paulo, disse durante a campanha eleitoral que as polícias paulistas vão atirar para matar a partir de janeiro.
“Veja os futuros governadores do Rio e São Paulo afirmando uma política de combate ao crime em absoluto desrespeito aos direitos humanos. Isto me preocupa. O futuro governador do Rio chega a dizer que ia autorizar a polícia a abater os criminosos. O que tem que haver é prisão. É claro que em um confronto pode haver mortes, mas não como uma política a ser desenvolvida. Isto é com a benção do Bolsonaro. Não tenho dúvida de que tem todo um entrosamento [entre os eleitos]. ”
Ex-integrante da Comissão da Verdade, Dias tomou, durante os trabalhos do grupo, o depoimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado duas vezes em primeira instância por crimes de tortura cometidos durante a ditadura. Jair Bolsonaro refere-se a Ustra, morto em 2015, como um herói. A Comissão apontou o coronel como um dos responsáveis por graves violações.
“A grande função da Comissão da Verdade foi mostrar o que aconteceu durante a ditadura, principalmente aos jovens que não conviveram com a ditadura. Para que ela não se repita. Daí a razão da minha preocupação [com] que o presidente Bolsonaro, que nega ter existido ditadura, implante ações que tenham semelhança com aquilo que foi praticado. A mim assusta muito saber que o presidente da República defende aqueles atos de violência que foram praticados.”
O ex-ministro, que acompanhou e defendeu vítimas de tortura durante o regime militar, também teme ações violentas de civis. “Durante a ditadura, as ações eram praticadas por agentes públicos. Parte da população aceita e aprova essas posições. Meu receio é que violências podem [vir a] ser praticadas por pessoas normais, que não estão vinculadas ao governo”, comenta.
Dias afirma que não se surpreendeu com o apoio, ao menos parcial, do juiz Sergio Moro a propostas do plano de governo de Bolsonaro. O magistrado aceitou o convite para ser ministro da Justiça no futuro governo e declarou que o presidente eleito é figura moderada, ponderada e sensata.
Em entrevista concedida no último dia 6, Moro se disse favorável ao fim da progressão de penas e saídas temporárias no caso de integrantes de facções criminosas. Ele também manifestou apoio à redução da maioridade penal para 16 anos em casos de crimes graves, à flexibilização da posse de armas e à revisão dos excludentes de ilicitude (licenças em algumas situações para não punir policiais que atiram e matam). “Acho que faz parte do perfil dele [Moro]. Se não fosse [parte do perfil], ele não iria aceitar [o cargo]”, diz o ex-ministro.
Na opinião de Dias, a decisão de Moro de ocupar um cargo no governo Bolsonaro demonstra que o magistrado não atuou com imparcialidade na operação Lava Jato. “Ele mostrou que, na realidade, já tinha uma predisposição, e não uma independência e um equilíbrio que o juiz deve ter.”
O ex-ministro e seu escritório defendem a Odebrecht em processos da Lava Jato. Para ele, Moro deveria cumprir uma espécie de quarentena entre o período na magistratura e a atuação na política.
Dias discorda, portanto, da alegação de Moro de que o cargo de ministro seria técnico.
“Não existe uma posição só técnica. Um ministro faz parte de um governo. Portanto, tem uma opção política. Óbvio. Fui ministro, eu me reportava ao Fernando Henrique Cardoso, que era o presidente, e é claro que eu seguia a linha política dele.”
Do UOL