A verdade sobre o filme que discrimina indígenas divulgado por ministra pastora
Anunciada como a futura chefe do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – órgão ao qual a Funai (Fundação Nacional do Índio) será subordinada no governo Jair Bolsonaro (PSL) – a advogada e pastora Damares Alves se envolveu em uma polêmica ao defender no Congresso uma lei contra o que chama de “infanticídio indígena”.
Assessora do senador Magno Malta (PR-ES), Damares é fundadora do Movimento Atini – Voz Pela Vida, que diz ter como objetivo “prevenir o infanticídio junto às comunidades e profissionais atuantes em áreas indígenas”.
Desde 2015, a organização e sua entidade parceira Jocum (Jovens com uma Missão) estão sendo processadas pelos escritórios do Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal e em Rondônia por divulgarem um filme encenado no qual crianças indígenas deficientes são supostamente enterradas vivas por parentes.
O filme, chamado Hakani, diz retratar uma “história verdadeira” encenada por “sobreviventes ou vítimas resgatadas de tentativas de infanticídio”.
No entanto, segundo o MPF, a encenação usou crianças e adultos da etnia karitiana, “povo que não tem a prática de infanticídio em sua cultura e que passou a sofrer diversas consequências negativas após o documentário, inclusive discriminação e preconceito”.
Além disso, o orgão diz que “o vídeo induz o espectador ao erro por fazer crer que o infanticídio é comum entre os indígenas”. O povo karitiana tem cerca de 300 integrantes e habita o Estado de Rondônia.
Em 2017, atendendo ao pedido do MPF-DF, a Justiça Federal do Distrito Federal determinou que o filme fosse retirado dos sites das organizações, mas rejeitou o pleito por uma indenização, alegando que as rés são entidades sem fins lucrativos.
A ação movida pelo MPF-RO ainda será julgada, segundo a assessoria de imprensa do órgão. Nela, a Procuradoria pede que os indígenas karitianas sejam indenizados em R$ 3 milhões por danos morais coletivos.
O órgão diz que o objetivo da ação não é discutir “a questão do ‘infanticídio’ indígena em si, até mesmo porque são raros os registros de povos indígenas na Amazônia que adotam tal prática”, mas sim os danos que a encenação teria provocado entre os indígenas.
Um laudo antropológico produzido pelo MPF-RO diz que, “além de terem sido usadas para finalidade diversa da que fora dito aos indígenas”, as imagens gravadas entre os karitiana “representaram atos de extrema relevância sóciocultural”.
Para esse povo, segundo o laudo, “simular o enterro de uma pessoa viva é o mesmo que matá-la, significa que a alma daquela pessoa morreu”. O laudo diz que o menino que foi enterrado se tornou uma “criança triste, deprimida e constantemente doente”.
O vídeo foi divulgado em vários sites e usado como referência nos debates do Projeto de Lei 1.057, também conhecido como Lei Muwaji. De autoria do deputado federal Henrique Afonso (PT-AC) e apresentado em 2007, o projeto foi aprovado na Câmara em 2015 e está em discussão no Senado.
Em ao menos dois sites, segundo o MPF-RO, imagens do vídeo foram usadas como se fossem reais, e não encenadas, para pedidos de colaboração e apadrinhamento de crianças apontadas como “sobreviventes de infanticídio”.
A Justiça determinou a retirada das imagens. No site da Atini, no lugar da foto principal, foi escrita a mensagem “Erga sua voz pela justiça – por decisão judicial, esta imagem foi removida”.
Apesar das decisões judiciais, o vídeo segue disponível em alguns links do Youtube.
A trama encenada se passa numa aldeia indígena identificada como sendo do povo Suruwahá (também conhecido como Zuruahã), grupo com cerca de 170 integrantes no sul do Amazonas.
A rotina da aldeia é quebrada por uma tempestade que faz a maloca desabar. Tempos depois, um casal que tinha um filho e uma filha deficientes morre após ingerir uma raiz.
A comunidade dá o veredito: a tempestade e as mortes eram punições pela recusa do casal em matar os filhos deficientes, que haviam tido suas almas roubadas por espíritos maus.
O grupo então cava duas covas nos fundos da maloca. As duas crianças são enterradas vivas enquanto choram.
O menino não sobrevive, mas a menina é salva por um irmão. Um adulto protesta: “Para o bem da tribo, ela deve morrer. Ela não poderá comer da nossa comida ou morar na nossa maloca”, afirma.
Mesmo assim, o menino cuida da irmã e, três anos depois, leva-a a um posto missionário, onde a menina passa a viver.
Uma narradora diz, então, que “na maioria dos casos, o infanticídio acontece por pressão dos pajés”.
“Hoje cada vez mais indígenas das mais de 200 tribos brasileiras estão lutando para acabar com essa prática”, afirma a narradora.
O vídeo passa a intercalar depoimentos (não se sabe se verídicos ou encenados) em que indígenas de diversos grupos citam casos de crianças que foram mortas – ou que sofreram pressões para que fossem mortas – por serem deficientes.
O filme termina por mostrar indígenas em Brasília, onde, segundo a narradora, eles “começaram uma batalha legal para garantir às suas crianças os mesmos direitos que outras crianças no Brasil e ao redor do mundo têm”. E apresenta a Lei Muwaji, “que compele o governo brasileiro a intervir em casos de crianças indígenas em risco do infanticídio”. Segundo o vídeo, o nome da lei homenageia uma indígena “que escolheu deixar o povo em vez de matar uma filha com paralisia cerebral”.
A narradora cita, no entanto, entraves para sua aprovação, como a oposição de grupos que “acreditam que a preservação da cultura é mais importante que a vida”.
O filme é dirigido por David L. Cunningham, filho dos fundadores da agência missionária Youth with a Mission. No Brasil, onde se chama Jovens com uma Missão (Jocum), a entidade tem sede em Porto Velho.
Em seu site, a Jocum diz atuar na Amazônia há mais de 20 anos. “Por se tratar de uma área geográfica e demograficamente desafiadora fomos aprendendo com Deus a viver o Evangelho entre indígenas e ribeirinhos de uma forma integral.”
A Jocum e a Atini não responderam aos questionamentos da reportagem sobre as ações do MPF.
Na ação a que responde na Justiça de Rondônia, a Jocum diz que o MPF adota postura omissa e cruel ao evitar “discutir a temática do infanticídio”.
“Em contraposição ao entendimento do parquet (MPF), a ré acredita que a vida de cada criança indígena tem valor. Na verdade, a ré preza pela vida de todas as crianças, diferentemente da autora, para quem a vida de uma criança pode ser dizimada em nome da cultura”.
A entidade questiona ainda o laudo antropológico apresentado pelo MPF, classificando-o como uma prova “ilegal, antecipada e unilateral.”