Segredo é regra nas cortes supremas de EUA e Europa
Após o presidente Lula alertar para o risco de se transformar processos no Supremo em briga de torcidas, com direito a intimidação da arbitragem, vale dar uma olhada como funcionam as coisas nos EUA e na Europa, onde há mais pão e menos circo. Confira.
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Como os Supremos Tribunais de EUA e Europa tomam decisões – e lidam com questões espinhosas
- Paula Adamo Idoeta – @paulaidoeta
- Da BBC Brasil em São Paulo
As sessões, os votos e as decisões
Primeiro, é preciso entender o funcionamento desses tribunais. O STF brasileiro acumula a tarefa de lidar com questões constitucionais (ou seja, determinar se leis, normas, atos e decisões das diversas instituições estão em acordo com a Constituição), de ser a última instância da Justiça (fazer análise de recursos) e julgar casos originários (o mensalão, por exemplo). Na prática, isso vinha levando o STF a ser, também, um tribunal penal para políticos com foro privilegiado – competência que a Corte americana, por exemplo, não tem.
A ampla gama de atribuições do STF é incomum às cortes máximas em outros países, explica Nikolay Bispo, coordenador-executivo do Núcleo de Justiça e Constituição da FGV Direito SP.
Nos EUA, a Suprema Corte é também a última instância da Justiça e costuma aceitar julgar casos sobretudo relacionados a leis federais ou tramitando em jurisdição federal (casos que acabam, como no Brasil, tendo ampla repercussão na vida da população, em questões que vão desde aborto até imigração ou saúde). Além disso, a Suprema Corte tem a prerrogativa de escolher os casos que vai julgar – em geral, uma pequena parcela das ações que chegam ao tribunal.
Na Europa, por sua vez, as cortes mais tradicionais são os tribunais constitucionais, em geral limitando sua atuação a casos que digam respeito a questões referentes à Constituição de cada país.
Outra questão é o acompanhamento das sessões. Enquanto, por aqui, estamos acostumados a assistir ao vivo aos ministros lendo seus votos, na Suprema Corte dos EUA “os juízes se reúnem a portas fechadas e assessores não podem entrar nem mesmo para servir água”, explica Diego Werneck Arguelhes, professor-adjunto da FGV Direito Rio e especialista em Direito Constitucional Comparado.
Werneck conta que os juízes discutem até que se alcance maioria, e o “lado vencedor” na discussão fica incumbido de redigir um voto único, ou seja, uma justificativa unificada para a decisão da Corte.
Depois que se designa um relator para redigir o voto unificado do lado vencedor, este envia aos juízes que votaram com ele rascunhos de texto (minutas) detalhando como cada aspecto da decisão será colocado em prática.
“Essa é a maior diferença em relação ao sistema brasileiro: muitos juízes discordam (dos argumentos) nas minutas, então, ocorre uma negociação. ‘Concordo com o voto se essa frase for retirada’, pode dizer um juiz. A ideia por trás disso é que cada palavra da decisão será usada no futuro (para embasar decisões de Cortes inferiores)”, diz Werneck.
Pode até acontecer, continua Werneck, que o juiz relator americano perca o apoio dos demais que votaram com ele se não conseguir redigir um voto único que consolide o entendimento da maioria.
“É essa ameaça que força o juiz a negociar. E isso é uma diferença decisiva: no Brasil, não há um momento de elaboração conjunta da decisão, nem uma aprovação posterior do que o relator tiver feito”, explica o professor da FGV Direito Rio.
Aqui, dizem os especialistas, o acórdão publicado depois de uma decisão colegiada do STF nem sempre traz uma visão unificada da decisão dos ministros.
“Os 11 ministros podem chegar ao mesmo resultado mas por caminhos distintos – um pode votar contra por achar que tal lei não tramitou direito; o outro, por considerá-la inconstitucional. Nesse caso, como saber qual será a jurisprudência?”, questiona Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor de Direito Constitucional da PUC-SP.
Jurisprudência é justamente a orientação dada pela Corte Suprema para os tribunais inferiores. Sem uma justificativa clara e unificada para a decisão do STF, muitas vezes ela acaba sendo descumprida pelas demais instâncias judiciais, prossegue Arcaro Conci.
Além disso, “existe o problema de que o próprio STF muda muito de opinião”, opina o professor, o que não incentiva as Cortes inferiores ao seguir suas decisões.
Sessões secretas x abertas
E quanto às Cortes de países europeus? Segundo Arcaro Conci, as Cortes Supremas de Itália e França se reúnem a portas fechadas. As de Alemanha e Espanha têm parte de suas sessões abertas, mas não televisionadas, como no Brasil.
A Corte alemã, por exemplo, só toma decisões em sessões secretas e, em alguns casos, proíbe seus juízes de até mesmo publicarem eventuais votos dissidentes (os que vão na contramão do que decidiu a maioria), em uma tentativa de dar estabilidade ao processo e evitar que posições individuais ofusquem a posição do tribunal, explica o Núcleo de Justiça e Constituição da FGV Direito SP.
Para Werneck, as Cortes europeias em geral “se autolimitam”, ou seja, há menos mudanças de jurisprudência. “Não decidem cada caso como se fosse único. Isso dá uma sinalização política e você consegue se planejar a partir do que os tribunais disseram no passado.”
Novamente, cada modelo tem pontos positivos e negativos: de um lado, a maior visibilidade ao voto individual de cada ministro aumenta o que especialistas chamam de accountability – a prestação de contas do juiz perante a sociedade. De outro, pode enfraquecer a posição conjunta da Corte.
Essa divisão de opiniões se estende à transmissão ao vivo das sessões do STF. De um lado, muitos acham que traz transparência à Corte e aproxima a população do trabalho dos ministros. Já críticos dizem que gerou uma espetacularização do Poder Judiciário e aumentou a pressão política e pública sobre os magistrados.
Outra diferença importante, segundo Arcaro Conci, é que o sistema alemão, por exemplo, torna mais difícil que um caso chegue até a Corte Constitucional – em comparação com o STF brasileiro, que acaba ficando sobrecarregado.
Em palestras no Brasil em 2016, a juíza Sibylle Kessal-Wuf, integrante da Corte alemã, afirmou que esta julga 7 mil processos ao ano, contra os 100 mil anuais do Supremo brasileiro. A juíza destacou ainda a importância de o tribunal ficar em Karslruhe, a 750 km da capital Berlim, para se distanciar das pressões políticas. “O órgão de controla fica longe dos órgãos controlados. A distância só faz bem”, disse Kessal-Wuf, segundo o portal Conjur.
No Brasil, em contrapartida, “abriu-se espaço para que dezenas de atores políticos possam levar casos ao Supremo, além do alto número de pessoas com foro privilegiado (que são julgados por altas instâncias da Justiça). Aqui, há uma tradição na advocacia de que ‘em algum momento eu conseguirei levar meu caso ao Supremo’, o que é mais difícil de ocorrer em outros países”, diz Arcaro Conci.
Nesta quinta, porém, o Supremo decidiu por maioria que o foro privilegiado se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções desempenhadas, o que pode reduzir o volume de processos do tipo.
Polêmicas
É importante destacar também que os EUA não estão livres de polêmicas e debates acalorados com sua instância mais alta. Em janeiro de 2017, o presidente Donald Trump mudou o equilíbrio da Suprema Corte – até então com quatro juízes conservadores e quatro liberais – com a nomeação, para um lugar vago desde o governo Obama, do juiz conservador Neil Gorsuch. O tom mais conservador no tribunal gera agora especulações quanto à possível reversão de decisões prévias e históricas da própria Corte, como o direito ao aborto (autorizado em julgamento de 1973).
Aqui, parte dos ministros acabou conhecida por dar declarações de cunho político ou por ter sua imagem associada, pelo público, a um ou outro lado do espectro político. Nos EUA, isso também se manifesta: as posições políticas dos juristas cotados para a Corte Suprema costumam ser levadas em conta no momento da nomeação pelo presidente da República (e, depois, na aprovação pelo Senado), justamente na tentativa de influir no equilíbrio de forças do tribunal.
E, lá como cá, as nomeações de juízes costumam ser alvo de grande polêmica. Muitos presidentes acabam sendo criticados por escolher juízes que supostamente atendam seus interesses e preferências políticas. A diferença é que, após serem nomeados, é muito raro que os juízes dos EUA se manifestem em público sobre temas em julgamento.
Por fim, especialistas criticam o excesso de decisões monocráticas – de um único ministro – tomadas pelo STF brasileiro. Mesmo havendo deliberações coletivas da Corte sobre determinado tema, os ministros depois muitas vezes acabam decidindo casos individuais sob a interpretação que considerem adequada.
Cria-se, assim, o que críticos chamam de uma espécie de “loteria”: o destino do réu ou do processo pode depender do ministro sorteado para o processo, causando insegurança para o processo jurídico como um todo.
Em março, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a quatro réus condenados em segunda instância. Já a ministra Rosa Weber, por sua vez, negou habeas corpus à quase totalidade de casos do tipo que analisou nos últimos dois anos.
“Um relator pode dar uma liminar ou pedir vista de um processo e mudar completamente o jogo (do assunto em questão)”, critica Werneck. “Nos EUA e na Europa, decisões individuais não têm tanta proeminência, e em geral os juízes têm de convencer seus pares. (…) E um caso não fica dois ou três anos parado (por pedido de vista), porque existe uma pressão para os ministros se manifestarem dentro de um prazo, ainda que eles possam eventualmente pedir mais tempo.”
Várias dessas questões foram respondidas pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso em artigo de 23 de fevereiro na Folha de S. Paulo.
“Diversas das críticas pontuais (…) correspondem a disfunções que eu e outros colegas temos procurado combater. Muitas das críticas institucionais, no entanto, são injustas. As instituições são como autoestradas: passam por inúmeros lugares e tocam a vida de muitas pessoas. Se alguém fotografar apenas os acidentes do percurso, transmitirá uma imagem distorcida do que elas representam”, afirmou Barroso.
O ministro disse no texto que as decisões monocráticas são uma saída do STF para lidar com o excesso de processos, e que o descumprimento da Corte de suas próprias decisões prévias é “exceção, não regra”. Ele afirmou ainda que estão em curso debates internos no STF sobre alguns desses temas e algumas propostas estão “em fase de amadurecimento”.
O ministro defendeu, por exemplo, “um acordo de cavalheiros – que a maioria já pratica – estabelecendo que nenhuma questão institucionalmente relevante seria decidida por algum ministro individualmente”.
É possível mudar?
Caso haja um entendimento geral sobre uma necessidade de mudança no padrão de trabalho do STF, como levar isso a cabo?
Não é impossível, mas tampouco é fácil – ou de resultados garantidos, dizem os especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Segundo Werneck, essas mudanças poderiam vir na forma de emendas constitucionais votadas pelo Congresso – mas que poderiam acabar sendo consideradas inconstitucionais pelo próprio STF – ou na forma de alterações regimentais, caso a maioria do Supremo assim o decidisse.
Existem debates que abrangem desde limitar mandatos para os ministros (que só saem da Corte aos 75 anos, idade da aposentadoria compulsória) até restringir a competência do STF a questões constitucionais, mas está longe de haver um consenso sobre esses temas.
Na opinião de Werneck, na ausência de um consenso dentro da Corte para esse tipo de alteração, o mais provável é que mudanças graduais ocorram com o passar do tempo, à medida que a composição do STF for mudando.
Para Arcaro Conci, mudanças seriam bem-vindas, mas é preciso levar em conta o risco de se minarem as atribuições da Corte para beneficiar agentes políticos, em vez de fortalecer o trabalho judicial.
“Não há problema algum em revermos certas práticas do Supremo – por exemplo, o hábito (dos ministros) de manifestarem publicamente sobre os processos. Mas o perigo é que essa revisão ocorra de modo pouco democrático”, diz.
BBC