A democracia se mata aos poucos
Candidato bilionário fala em reduzir programas sociais tem apoio de trabalhadores de baixa renda, outro, casado três vezes, empunha uma agenda retrógrada de costumes e tem o apoio de grupos religiosos em nome de”valores familiares”, governante perde a eleição quando a economia do país está em seu melhor momento, campanha “antissistema” gera uma composição parlamentar ainda mais elitista e, finalmente, a pressão antiglobalização vem de partidos da extrema-direita.
A lista, que deixa de fora a eleição de um presidente adepto da liberação do porte de armas num dos países mais violentos do mundo, ora desestimula quaisquer esforços de compreensão da conjuntura ora produz obras apocalípticas que decretam o fim da história ou da civilização ocidental. Adam Przeworski não segue nem um caminho nem outro. O cientista político polonês, que se notabilizou por explicar como a democracia se compatibiliza com o capitalismo, não se compromete a oferecer ‘a’ resposta, mas despista as explicações que sugerem a globalização como causa de todos os males.
Przeworski não se incomodou com as estatísticas que mostram 23,6 mil livros publicados no século XX em inglês e registrados na Widener, a maior das bibliotecas de Harvard, contendo a palavra ‘crise’. Tascou um “Crises of Democracy” (ainda sem tradução em português), como título do livro que lançará no segundo semestre pela editora da Universidade de Cambridge.
O autor recorda o historiador conservador inglês Thomas Macaulay que, em 1842, nove anos antes de Karl Marx, disse que o sufrágio universal era incompatível com a democracia. Recupera, então, sua formulação de que a democracia foi a resultante do compromisso de partidos da classe trabalhadora e sindicatos em aceitar uma economia de mercado desde que partidos burgueses e organizações empresariais convergissem com alguma redistribuição de renda. É a partir do rompimento desse compromisso, que busca suas respostas.
O equilíbrio funcionou enquanto os governos foram capazes de regular as condições de trabalho, implantar programas de seguridade social e equalizar oportunidades, de um lado, e promover investimentos e reagir ao declínio dos ciclos econômicos, de outro. Quando os sindicatos perderam a capacidade de organizar trabalhadores e os partidos socialistas, suas raízes e sua capacidade de se distinguir no mercado político, diz, o compromisso foi ameaçado. Com o declínio acentuado da participação da renda do trabalho e um contínuo aumento na desigualdade, combinado ao menor crescimento da economia e a uma menor mobilidade social, o rompimento parecia inevitável.
Nascido em Varsóvia, de pais médicos, em 1940, nove meses depois da ocupação alemã, Przeworski deixou a Polônia aos 21 anos, graduado em Filosofia e Sociologia, rumo a um doutorado na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. De volta a Polônia, acabou deixando novamente o país em 1981 depois do golpe militar comandado pelo general Jaruzelski. Professor de universidades americanas, europeias e latino-americanas, assentou-se na Universidade de Nova York desde 1995. Em 2010 ganhou o Prêmio Johan Skytte, concedido pela Universidade de Uppsala e considerado o Nobel da ciência política.
Seus vínculos com o Brasil vêm do início da década de 1970, quando visitou o país pela primeira vez. Professor de fundadores do Cebrap, fez a conferência inaugural das comemorações dos 50 anos da instituição, quando apresentou algumas das conclusões do livro a ser publicado. Apesar de alguma intimidade com o Brasil, não se demora nas citações ao país, mas tira uma conclusão que pode ajudar a entender o que virá depois da névoa que domina a conjuntura nacional. De sua acurada lente sobre o cenário global, conclui que os militares deixaram de ser um ator político em quase todo o mundo. Os radicais de extrema-direita querem o poder pelo voto e, a despeito (ou por causa) do absenteísmo, têm sido bem-sucedidos. A corrosão da democracia é decorrência de um desgaste lento das instituições e não de uma tomada abrupta e violenta do poder.
Não escreve isso de ouvir falar. Faz jus ao empirismo que lhe deu fama. Entre 1788, data da primeira eleição nacional (nos Estados Unidos) de que se tem registro, até 2008, o poder político trocou de mãos no mundo como resultado de 544 eleições e 577 golpes. Em 68 países, incluindo Rússia e China, nunca houve mudança de poder entre partidos como resultado de uma eleição. Em apenas 13, democracia e capitalismo coexistem há um século sem interrupções porque fincados no compromisso de concessões de lado a lado.
São eloquentes os sinais apresentados da erosão desse compromisso. Os partidos que lideravam a arena política na maior parte dos países no início do século XX enfrentaram uma primeira chacoalhada no fim dos anos 1990 até o ‘treme-terra’ devastador pós-crise financeira de 2008. A falência dos partidos tradicionais é concomitante ao embaralhamento do seu espectro ideológico.
Nos países europeus, as pesquisas que cita indicam que, por larga maioria, os eleitores consideram ‘obsoletas’ as noções de direita e esquerda, mas a quase totalidade ainda é capaz de se localizar no espectro. Ou seja, os eleitores ainda têm uma identidade política mas já não encontram um sistema partidário que a reproduza. Foi nesse desencontro que desabrochou a extrema-direita. Dois achados de Przeworski lhe são contemporâneos: a queda no comparecimento eleitoral e a dissociação entre produtividade crescente e salário em declínio.
Esta, talvez, seja uma das dificuldades do pesquisador polonês em enquadrar o Brasil, uma vez que a ascensão da extrema-direita no país não se deu na presença nem de um nem de outro. O comparecimento eleitoral, em parte, pela obrigatoriedade do voto, pouco se altera no Brasil. Além disso, o que se assistiu, nos anos petistas em que germinaram o bolsonarismo, foi uma valorização salarial que superou o aumento de produtividade.
Apesar disso, o empobrecimento ainda está longe de igualar as condições de vida em que nasceram os regimes fascistas na primeira metade do século passado. Przeworski prefere denominar de populista a ascensão da extrema-direita hoje. E a identifica como irmã gêmea do neoliberalismo, por ambas conceberem a ordem social como uma geração espontânea, uma do povo, outra do mercado. Na visão de mundo de populistas e neoliberais, não há lugar para as instituições.
A raiva e a hostilidade dos eleitores prosperam sem filtros institucionais. A mais prosaica das pesquisas citadas no livro é aquela realizada nos Estados Unidos durante o feriado de Ação de Graças de 2017. Os encontros de celebração da data, tão popular nos EUA quanto o Natal no Brasil, que reuniram convidados de diferentes distritos eleitorais, duraram de 30 a 50 minutos menos do que aqueles realizados entre moradores do mesmo distrito.
Przeworski conclui o livro fiel à advertência de que não ofereceria previsões “capazes de fazer a astrologia parecer uma ciência”, mas duas de suas observações ficam a ressoar ao fim de suas 240 páginas. “As eleições são a sereia da democracia”, diz. É a partir delas que as esperanças se renovam. Os eleitores votam, esperam e aceitam o resultado. Mas se, eleição após eleição, as políticas públicas permanecem inalteradas, independentemente de quem a tenha ganho, os eleitores concluem que a democracia não tem serventia.
Talvez por isso, Przeworski se declare um pessimista moderado. A ascensão da extrema-direita com mudanças dentro das regras do jogo pode ter como reação um espectro partidário de cores mais definidas, sem partidos social-democratas, como diz, aburguesados, ou de direita, proletarizados. Só não se espere que uma política elitizada opere essa paleta de cores mais vivas. Mas se o Senado americano é um clube de milionários, na Câmara emergem deputados como Alexandria Ocasio-Cortéz, ex-balconista e filha de imigrantes, eleita no Bronx (NY), pelo Partido Democrata, que quer aprovar uma taxação de 70% sobre os super-ricos para financiar a agenda ambiental.
A segunda observação é sobre a imperceptível destruição da democracia por ela mesma. O autor cita uma lei que o governo polonês conseguiu aprovar no parlamento obrigando a Corte Constitucional a examinar as moções por ordem de chegada. Como a fila faz com que uma ação demore 3,5 anos para chegar ao plenário, o governo tem todo esse tempo para fazer valer uma lei que pode vir a ser considerada inconstitucional.
Face a fatos congêneres nos três Poderes, no Brasil, o exemplo polonês parece inocente. Para pegar um único casuísmo, em 2015, o Congresso aprovou a PEC da Bengala, apresentada pelo então senador Pedro Simon (PMDB-RS) dez anos antes, aumentando de 70 para 75 a idade com a qual os ministros do Supremo Tribunal Federal se aposentam.
Os argumentos vitoriosos foram o de que a mudança acompanharia os ganhos etários da população brasileira, além de proporcionar uma economia aos cofres públicos, uma vez que, ao vincular todo o Judiciário, evitaria o acúmulo de aposentadorias e vencimentos de novos contratados. A mudança, no entanto, tirou da então presidente Dilma Rousseff a possibilidade de indicar cinco ministros da Corte que chegariam aos 70 anos antes de 2018.
Ficará para o buraco negro da história a dúvida sobre o que teria sido da Lava-jato se a operação que pavimentou a ascensão de Jair Bolsonaro, hoje posta em xeque pelos áudios entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, teria sido tão amplamente chancelada por um Supremo com outra composição.
Do Valor