Em entrevista à Época, Dallagnol mostra amargura
“Quer um chocolate para adoçar a vida?”, perguntou a secretária da força-tarefa, em tom suave, pouco antes de Deltan Dallagnol começar a falar a ÉPOCA, na quarta-feira 7, na sede da Lava Jato, em Curitiba. A pergunta não foi à toa. Dallagnol está mudado. Aos 39 anos, o protagonista da operação no Ministério Público Federal (MPF) enfrenta o momento mais amargo dos cinco anos de Lava Jato. O ar está mais pesado. As respostas não são mais de bate-pronto, como nas dezenas de entrevistas em que encarnava como ninguém o papel de garoto-propaganda da operação e respondia sem pestanejar e — ele mesmo admite — com tom ousado. As críticas destemidas ao Supremo Tribunal Federal (STF), que lhe renderam até um dos dois processos a que responde no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), deram espaço a uma escolha criteriosa de cada palavra. Dallagnol agora mede cada resposta. Em alguns momentos, até pede para reformular o que está dizendo, talvez ao avaliar que algo dito poderá lhe criar mais problemas. Às vésperas de os conselheiros do CNMP se reunirem para decidir seu futuro, não precisa de mais problemas.
Na entrevista, Dallagnol negou ter investigado ministros do STF, como sugerem algumas das mensagens de seu Telegram, que vêm sendo publicadas há dois meses, mas confirmou ter mesmo tratado com seus colegas sobre a pertinência de pedir o impeachment de Gilmar Mendes. Também admitiu ter discutido a criação de uma empresa para gerir suas palestras e cogitado colocar sua mulher na administração do negócio. Frisou que, se o tivesse feito, estaria seguindo a lei.
Sobre Raquel Dodge, disse caber à procuradora-geral avaliar se deveria defendê-lo publicamente e esquivou-se de dar sua opinião sobre medidas do governo Bolsonaro criticadas por especialistas em transparência pública — a exemplo da indicação do filho Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador. Também se negou a responder se foi um eleitor do presidente em 2018, mas afirmou ainda manter contato com o ministro Sergio Moro — só não disse por qual canal.
Ao longo da conversa, o procurador mexeu pouco no celular, um iPhone novo que recebeu do MPF. O antigo aparelho, cujo Telegram foi hackeado, foi devolvido para a Procuradoria depois de ser apagado. Não usa mais o aplicativo, e disse também estar menos assíduo no WhatsApp.
Outras mudanças são mais profundas. “É claro que em alguns momentos pensei em desistir”, afirmou, retomando, em seguida, seu tom idealista. “Mas o propósito de servir à sociedade, com minha fé e esperança em Deus, é uma estrela que ilumina o caminho e dá forças para seguir adiante”, disse, em deltanês castiço.
Evangélico, perguntado sobre se haveria uma razão divina por trás dos últimos dois meses, silenciou. A falta de ruído dentro da sala permitiu que sobressaíssem os gritos que vinham de fora do prédio do MPF. Ali, cerca de dez manifestantes protestavam contra Dallagnol e Sergio Moro. “Quem lucrou mais: Deltan ou Moro?”, dizia uma das mensagens, em referência aos ganhos dos dois com palestras. O tempo passava, e, mesmo depois de começar a falar, o homem que vê em sua atividade uma missão metafísica não conseguiu responder se a Vaza Jato tem sido uma provação que Deus lhe reservou.
Como o senhor tem acompanhado a chamada Vaza Jato?
Sempre lutamos pela causa anticorrupção. Sempre atuamos de modo correto, de acordo com a lei, de acordo com a ética. O que vemos é uma série de supostas mensagens, com origem criminosa, roubadas, sendo usadas de modo descontextualizado, editado, para embasar acusações que não correspondem à realidade. Isso só se compreende dentro do contexto de reação contra as investigações que atingiram pessoas poderosas e interesses poderosos.
Como isso o afeta pessoalmente?
Nunca ninguém disse que seria fácil enfrentar poderosos. Ninguém nunca disse que não existiriam reações. Pelo contrário, o que a gente vê na história do mundo é que “corruption fights back”, que a corrupção reage. Em determinados momentos, tivemos a expectativa de que a Justiça poderia se impor e poderia dobrar o sistema de corrupção. Esse sistema foi dobrado, mas não foi quebrado. O que vemos hoje é uma reação. Sentimos, é claro, uma certa frustração, mas, ao mesmo tempo, temos a esperança e a expectativa de que as instituições e a sociedade brasileira evitarão retrocessos.
O senhor investigou algum ministro do STF?
A Lava Jato jamais investigou autoridades com prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal. Nestas duas últimas duas semanas, surgiram várias especulações nesse sentido, com base em supostas mensagens criminosamente obtidas. Contudo, se tivesse havido uma investigação, haveria um ato de investigação. A questão é: cadê esse ato? Não existe nenhum ato. Essas acusações não têm base na realidade. Elas contrastam com a realidade.
Qual foi o comportamento da força-tarefa ao longo destes anos em relação a autoridades com foro privilegiado?
Existiram duas situações em que chegaram a nossas mãos informações sobre pessoas com foro privilegiado. O primeiro caso é o de um réu ou investigado que decidia colaborar com a Justiça e nos trazia relatos que implicavam pessoas com foro privilegiado. Nesses casos, encaminhávamos esses relatos para Procuradoria-Geral da República (PGR ), que é a autoridade competente para atuar nesses casos. Em vários desses casos, passamos a atuar em conjunto, cada um em sua esfera de atribuição. A Procuradoria-Geral em relação às pessoas com foro, e a força-tarefa em relação às pessoas que não tinham foro nesses acordos de colaboração. A segunda situação é a em que colhemos provas numa investigação de pessoas sem foro privilegiado e lá no meio dessas provas existiam documentos, informações, transações bancárias relativas a pessoas com foro. Assim que identificadas essas transações, e existindo indícios de envolvimento dessas pessoas em crimes, esse material era encaminhado para o Supremo Tribunal Federal ou para a Procuradoria- Geral da República. Sempre seguimos nesse ponto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que diz que a investigação e as provas só devem ser enviadas ao Supremo quando existem evidentemente indícios do envolvimento em crime de autoridade com foro privilegiado.
Buscar indícios já não é investigar?
É preciso distinguir buscar os indícios de recolher os indícios em material já obtido. São duas coisas diferentes. Você está investigando um empresário, coleta documentos e, lá no meio desses documentos, folheando as páginas, encontra uma lista indicando pagamentos a pessoas. Só que você não consegue identificar quem são aquelas pessoas porque existem apenas iniciais. Então busca compreender aquele documento, verificando os endereços que constam nos documentos, por exemplo. E passa a identificar, a partir dessa verificação, que aquelas iniciais daqueles nomes que estão no documento se referem a pessoas com foro privilegiado. Assim que isso é identificado, você remete para a instância superior. Isso não é investigar pessoas com foro. Isso é seguir a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre esse assunto.
Refiro-me a dois episódios específicos que constam nas mensagens divulgadas. Um momento é aquele em que o senhor pergunta sobre a casa do Toffoli para confirmar endereço. O outro é aquele sobre eventual cooperação internacional com a Suíça para saber se entre beneficiários de Paulo Preto (apontado como operador do PSDB) estaria o ministro Gilmar Mendes. Como interpreta os dois casos?
Primeiro, não reconhecemos essas mensagens com origem criminosa, que podem ter sido adulteradas, e nós não nos recordamos das mensagens, dos detalhes que trocamos de 1 milhão de mensagens ao longo de cinco anos. A simples alteração de uma palavra pode mudar completamente o significado. Dito isso, é plenamente lícito analisar elementos de provas já colhidas e buscar compreendê-los, fazendo verificações preliminares. E assim que surjam — e na hipótese de que surjam informações, evidências ou indícios de que existe um envolvimento de uma pessoa com foro privilegiado —, aí sim seu dever é imediatamente encaminhar essas informações para o STF e para a PGR. De novo, jamais investigamos ministro do Supremo Tribunal Federal ou autoridades com foro privilegiado. Agora, ao longo dos cinco anos da Lava Jato, foi um trabalho corriqueiro analisar provas já colhidas e verificar se existiam indícios de envolvimentos de pessoas com foro. Existindo, sempre mandamos para a instituição competente. Ainda que se supusesse que essas conversas fossem verdadeiras, o que a gente admite por hipótese, a identificação, em coordenação com o procurador-geral, de um endereço para verificar se existem indícios mínimos do envolvimento de autoridade com foro não é um ato de investigação. Ainda que se admitisse, por hipótese, que essas conversas fossem verdadeiras — o que a gente não admite, mas ainda que admitisse por hipótese —, não surgiu nenhuma evidência, nenhum indício de que as contas de Paulo Preto, Paulo Vieira de Souza, estejam ligadas a autoridades que têm foro privilegiado. Se surgissem, ou se surgirem, imediatamente esses elementos de informação vão ser encaminhados.
Em algum momento chegou ao senhor a informação de que contas de Paulo Preto teriam dinheiro que seria do ministro Gilmar Mendes?
Jamais chegou essa informação de que contas do Paulo Preto teriam vinculação com o ministro Gilmar Mendes. Jamais chegou uma notícia… A gente está falando de cinco anos de operação em ritmo intenso. Não posso lembrar exatamente de tudo que aconteceu em todos os casos. Mas nunca chegou nenhuma informação concreta, indício ou elemento que apontasse uma vinculação entre essa conta no exterior e o ministro Gilmar Mendes. Se tivesse chegado, teria sido encaminhada imediatamente para a PGR e para o STF.
Existia, sim, uma especulação pública de proximidade do ministro Gilmar Mendes e figuras do PSDB. E Paulo Preto era um apontado como operador do PSDB. Agora, o que existia publicamente eram especulações, e nada de concreto, real ou palpável. De novo: nós jamais investigamos qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal. Nem sequer existiria utilidade em fazermos isso, porque qualquer coisa que fosse produzida seria nula. Então não faz nem sentido a alegação de que investigamos o ministro do Supremo.
Cogitaram pedir o impeachment de Gilmar Mendes em algum momento?
Não vou comentar supostas mensagens.
Isso é o tipo de coisa de que vocês se lembrariam. Não é se bebeu água num copo de vidro ou de plástico.
Concordo. Em diversos momentos, ao longo da operação, cogitamos uma série de medidas relativas a decisões do ministro Gilmar Mendes. Cogitamos recursos que sugerimos para a PGR, cogitamos encaminhar pedido de suspeição de Gilmar Mendes, estudamos se os atos dele configurariam, para além de atos sob suspeição, infrações político-administrativas. E, se tivéssemos entendido que era o caso de fazer isso, teríamos encaminhado uma representação pelo impeachment. Como é público, não fizemos. Nós encaminhamos, sim, como é público, uma representação pela suspeição do ministro Gilmar Mendes. E tudo isso aconteceu sempre de modo legal e legítimo. A questão que se deve colocar é: essa suspeição que foi alegada não é procedente? Não tem razão? Mais: os atos praticados não são passíveis de exames sob a ótica de infração político-administrativa, vulgo impeachment? Essa é uma questão pertinente do debate público. É possível que tenhamos conversado isso em nosso grupo de mensagens. Mas, de novo: nada de errado, nada de ilícito. Pelo contrário. Mostra denodo, diligência, cuidado e nossa disposição de adotar todas as medidas a nosso alcance, dentro da lei, para defender o interesse público que a sociedade depositou em nossas mãos.
Em entrevista a ÉPOCA, o juiz Marcelo Bretas disse que falta ainda à Lava Jato avançar sobre a corrupção do Judiciário. Concorda?
Não sabemos ainda se a operação vai poder continuar existindo como existiu até hoje, porque temos vivido uma forte reação contra a Lava Jato, nos moldes em que aconteceu na Operação Mãos Limpas, na Itália. Agora, surgindo indícios ou evidências em relação a integrantes do Poder Judiciário, Ministério Público ou qualquer Poder, essas pessoas podem e devem ser investigadas conforme determina a lei. Nós vimos, ao longo dessas apurações, que surgiram evidências contra inúmeras pessoas poderosas, e uma possível razão pela qual podem não ter aparecido pessoas do Judiciário… Eu vou deixar… Eu vou reformular, tá? É muita especulação, sabe? Deixe-me ver como respondo isso. A Operação Lava Jato não escolhe alvos. Ela segue o caminho que as evidências e os indícios traçam para ela. Sempre que o caminho da investigação nos leva a pessoas com foro privilegiado, seja quem for, nós sempre adotamos as providências que deveríamos adotar. O que a gente faz é insistir para todos os candidatos à delação, à colaboração, que tragam todas as informações sobre todos os crimes de que eles tenham conhecimento. Independentemente do lugar em que esses crimes aconteceram. Seja em relação a congressistas, ministros, governadores, integrantes do Judiciário e Ministério Público. E isso é feito sempre em conjunto com a PGR, porque é ela que atua nesses casos.
Em todo o tempo, o senhor, o ministro Moro e outros procuradores ressaltam a possibilidade de que as mensagens tenham sido adulteradas ou falsificadas. Encontrou ao longo destes dois meses alguma adulteração, alguma falsificação?
Não temos hoje o padrão de comparação dessas mensagens, porque, quando sofremos o ataque, muito antes da divulgação dessas supostas mensagens, apagamos o aplicativo e trocamos nossos aparelhos celulares com o objetivo de proteger informações sobre investigações em andamento e a segurança pessoal de todos os envolvidos. Não conseguimos comparar e, mais, não temos como nos recordar de 1 milhão de mensagens que foram trocadas ao longo de cinco anos. Esta é a conta que uma revista apresentou com base nesse suposto material: haveria 1 milhão de mensagens.
Houve alguma coisa que o senhor olhou e falou: “É impossível eu ter dito isso!”?
Vimos várias supostas mensagens que contrastam com a realidade comprovada, o que nos desperta certo estranhamento. Por exemplo, houve uma suposta mensagem que falaria de uma busca e apreensão que jamais aconteceu. A busca e apreensão do Jaques Wagner, que jamais aconteceu. Existiriam supostas mensagens que falariam — ou que foram descontextualizadas e deturpadas — sobre o afastamento de uma procuradora, da Laura ( Tessler ), de um caso. Procuradora extremamente competente e diligente, que havia atuado em uma audiência do caso Palocci.
Existe hoje uma maneira de o senhor confrontar o que está sendo publicado com o que havia em seu telefone, que é solicitar o que foi pego com o hacker, o material bruto que ele pegou. Isso já está com a Justiça, e o senhor, como parte envolvida, poderia solicitar acesso a suas mensagens. O senhor fez essa solicitação ou pretende fazer?
Nesse ponto, você está enganado em seu pressuposto. Esse material apreendido com o hacker é um material obtido por um criminoso que tem uma ficha corrida extensa, inclusive por falsificação. Receamos que esse material tenha sido falsificado, editado, antes mesmo de ter sido passado para a frente, para jornalistas.
O que foi pego com o hacker é o material bruto, certo?
Aí é que está. Esse material pode ter passado por edições e, segundo algumas análises técnicas que lemos na imprensa, não é nem passível de verificação se houve edição ou não. Ou seja, tem uma prova ilegal de origem criminosa, de um material que não é passível de verificação de autenticidade, que foi obtido das mãos de alguém que tem ficha corrida, inclusive, por falsificação. De novo: se for o material extenso, é possível que muitas coisas daqui sejam verdade. Agora, a mudança de palavras, a inserção de “não”, a descontextualização de frases, o apagamento de diversas mensagens em meio a outras, podem mudar completamente o sentido, e não temos como recordar com exatidão, em detalhes, as mensagens, as centenas de milhares de mensagens que soltamos ao longo dos últimos cinco anos. Esse é o ponto. A grande questão é: tudo que a gente faz é registrado publicamente em atos, em manifestações, petições, que têm por base os fatos, as provas e a lei. O que está errado? Qual o ato errado? Não surgiu um ato que foi apontado até agora como ilegal, como ilícito ou ilegítimo. O que vemos é muita fofoca, muita criação de polêmica em cima de descontextualizações, deturpações feitas a partir de mensagens de origem criminosa.
Por que o senhor não entregou seu telefone para a perícia?
Não entregamos os telefones para a perícia porque a Polícia Federal nos disse que esse não era um procedimento que seria de utilidade para a investigação. O que existiu, segundo se identificou a partir da análise da PF, foi uma invasão de aplicativos, invasão acontecida na internet de material que se encontrava na nuvem — e não invasão do dispositivo, do aparelho do celular. Por isso, a perícia do aparelho celular não seria útil. E, seguindo as recomendações que recebemos da Polícia Federal, quando os ataques aconteceram, trocamos os aparelhos celulares. Esse aparelho celular nem está mais comigo.
O senhor o vendeu?
Não, devolvi para a administração do Ministério Público.
Então está em poder do MPF?
Isso.
Em algum momento, cogitou abrir alguma empresa para gerir suas palestras?
Não existe uma empresa, não foi aberta empresa, não foi feito convênio com qualquer entidade para realização de cursos ou palestras. No começo, lá por 2000, não na época dessas supostas mensagens divulgadas, mas muito atrás, cheguei a cogitar isso. Cogitar abrir uma empresa em meu nome para prestar serviços de palestra em que eu não seria o administrador, a partir do fato de que outros agentes públicos, promotores, juízes, prestam muitas vezes sua atividade de docência por meio de pessoas jurídicas. Seria o mesmo tipo de pessoa jurídica aberta por diversos professores para dar aula em cursinhos, universidades. Contudo, entendi que seria mais transparente prestar esse serviço como pessoa física, ainda que os tributos fossem maiores. E, por isso, sempre prestei contas como pessoa física, pagando todos os tributos de modo regular.
Quando cogitou abrir a empresa, sua esposa seria administradora?
Não se chegou a esse ponto. Cheguei apenas a analisar as vantagens e a regularidade da eventual abertura de uma empresa. Agora, se fosse aberta, eu não seria o administrador. Não tem nada de errado em membros do Ministério Público e juízes terem cursos jurídicos. O que vemos é uma tentativa por muitas pessoas interessadas de estigmatização e de “protogenização” ( neologismo em referência ao ex-delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, cuja atuação provocou a anulação da Operação Satiagraha ). Muitas pessoas interessadas estão buscando atacar a Lava Jato por meio de ataque a pessoas que trabalham no caso. Isso não sou só eu, é o ex-juiz e ministro Sergio Moro, a delegada da PF Erika Marena, o auditor da Receita Roberto Leonel. Vemos uma reação do sistema contra as pessoas que atuaram contra poderosos.
O senhor diz que sempre doou parte do que recebeu por palestras a atividades filantrópicas ou de combate à corrupção.
Parte significativa, e não só das palestras. Parte dos royalties de meu livro é reservada para atividades anticorrupção. No ano passado, além das doações que fiz e já se tornaram públicas, que somam cerca de R$ 300 mil, procurei a Transparência Internacional para realizar doações expressivas. Coisa de R$ 100 mil para campanhas anticorrupção. É algo em que acredito. É algo a que tenho dedicado minha vida. O que faço ao dar palestras é contribuir para o propósito pelo qual tenho trabalhado. É convergente com a atuação na minha profissão. Eu pago todos os tributos em cima dessas palestras. E mais: eu doo valores por uma visão de responsabilidade social para atividades beneficentes. Essas doações vão para crianças que sofreram abusos em casa, como no caso de uma entidade daqui de Curitiba, vão para crianças com câncer, como no caso do Hospital Erasto Gaertner, vão para projetos sociais, como o da Fundação Lia Maria Aguiar, para a Acridas ( Associação Cristã de Assistência Social ), redução de fome e miséria no Nordeste… São doações que beneficiam a sociedade de modo amplo.
Qual é o percentual que o senhor doa? Há um valor fixo?
Não tem uma coisa fixa. É uma coisa global. Mas, sem ter feito a conta, diria que cerca de 50% ou foi doado ou está reservado para a causa anticorrupção.
Nestes cinco anos de Lava Jato, quanto o senhor recebeu por palestras?
Essa é uma atividade privada, da qual presto contas à Corregedoria, à Receita Federal.
Nas supostas mensagens, há momentos em que o senhor se mostra preocupado com uma eventual repercussão negativa das palestras.
Não vamos entrar nas mensagens. A maior parte de minhas palestras é gratuita, o que está em harmonia com meu propósito, de contribuir com um Brasil melhor. Ou seja, uma atividade boa, que beneficia a sociedade de diversos modos, e, ainda assim, existe um oportunismo de buscar e identificar qualquer brecha para atacar a operação, distorcer fatos e atacar os personagens que acabaram tendo protagonismo na operação. E o objetivo disso, a meu ver, não é atacar a pessoa do Deltan, a pessoa do Moro. É atacar o caso, a Lava Jato. É derrubar, tirar credibilidade das investigações para que seja mais fácil, em seguida, avançar sobre ela com retrocessos, como aconteceu na Itália (aprovando leis novas, reduzindo prazos prescricionais e proporcionando a impunidade). Isso levou a uma desmoralização da operação perante a opinião pública, mediante acusações de supostos arbítrios, abusos, que jamais vieram a se confirmar. Mas os abusos foram usados para tirar a credibilidade da operação, para que em seguida o sistema político pudesse passar por cima com um rolo compressor, promover uma série de retrocessos e garantir que a Itália continuasse a ser um país corrupto como era antes da Operação Mãos Limpas.
Não queremos retornar a um passado do qual não temos saudades. Um passado que enterrou operações como Satiagraha e Castelo de Areia, que poderiam ter se tornado a Lava Jato. Um passado em que se discutiam filigranas jurídicas que davam margem à anulação de grandes operações. Um passado em que, em vez de as pessoas que praticaram crimes graves serem punidas, no caso Satiagraha, por exemplo, quem acabou sendo punido foi o delegado do caso e um jornalista que escreveu um livro sobre o assunto. Não queremos voltar a esse passado. Queremos, sim, que as pessoas que praticaram crimes graves sejam responsabilizadas e que não haja retrocessos.
O senhor teme ser afastado da função de procurador?
Tenho visto essa questão na imprensa nos últimos dias como uma possibilidade. Agora, quando eu penso nisso, eu penso que não se trata de Deltan. Se trata, sim, de um procurador que fez um trabalho consistente contra a corrupção, junto com vários outros agentes públicos e instituições, que está sendo agora… Cujo afastamento está sendo cogitado num movimento de reação às investigações. Então, não se trata de Deltan, se trata, sim, da independência que a gente quer dar e da proteção que a gente quer dar para um procurador poder fazer seu trabalho mesmo contra pessoas poderosas. É disso que de fato se trata. Trata-se de: o que nós queremos que aconteça com as pessoas que se dispõem a trabalhar sob risco, sob ameaças, sob pressões, sob grande carga de trabalho em grandes casos que envolvem interesses poderosos? Não se trata, de novo, de Deltan. Se trata de algo que pode ser desencadeado a partir de Deltan e atingir outras pessoas.
O que o senhor diria aos conselheiros do CNMP que vão analisar sua situação?
A atuação da Lava Jato sempre foi legal. Ética. E enfrentou interesses poderosos. E é preciso existir uma defesa institucional e social de pessoas… da atuação das pessoas que enfrentaram esses interesses, mesmo quando esses interesses poderosos estão num movimento de reação.
O que se deve examinar são todos os atos que praticamos e todos os atos que praticamos estão amparados em fatos, em provas e, invariavelmente, na lei. Por isso que até agora nenhum ato que nós praticamos foi questionado. Nenhum ato foi apontado como ilícito, ilegal ou ilegítimo.
Caso o Conselho Nacional do Ministério Público decida afastar o senhor, o que fará?
( 25 segundos de silêncio. ) Meu compromisso é com a causa pública e com o serviço à sociedade. Sempre vou usar, dentro da lei, dos instrumentos e das minhas habilidades para buscar servir à sociedade, seja como procurador da Lava Jato, como procurador fora da Lava Jato. Nós temos, ao longo de nossa vida, um compromisso com a causa pública. O trabalho intenso na Lava Jato não foi algo episódico. Nem do ex-juiz federal Sergio Moro, nem do auditor Roberto Leonel, nem em meu caso, nem no caso de vários outros colegas que trabalham na operação. Aconteça o que acontecer, meu compromisso é de seguir fazendo tudo que está a meu alcance para servir à sociedade. Reconhecendo que isso não é suficiente. O que a sociedade precisa reconhecer é que não é suficiente um grupo de procuradores, policiais, juízes, auditores, de pessoas, lutar contra o sistema corrupto. Talvez a ilusão tenha sido em algum momento acreditar que a Justiça iria se sobrepor ao sistema político. Quando é o contrário: o sistema político se sobrepõe à Justiça. Se nós queremos um Brasil melhor, não existe outro caminho senão o do envolvimento mais ativo de seus cidadãos na vida pública. E eu não me refiro aqui às pessoas se candidatarem. Refiro-me ao exercício da cidadania. A investir tempo, horas, para escolher seus candidatos. A pesquisar o passado dessas pessoas, a verificar se as pessoas entendem de políticas públicas com base em evidências, seja qual for o espectro ideológico do candidato. Eu me refiro a apoiar candidatos por meio de pequenas doações eleitorais; R$ 30, R$ 50. Independentemente do espectro ideológico. Refiro-me às pessoas defenderem as mudanças, envolverem-se nas mudanças de que nós precisamos, as reformas de que nós precisamos como país.
O senhor teme que a força-tarefa da Lava Jato seja dissolvida?
Meu receio é muito maior do que isso. Meu receio é que a causa de corrupção perca consistência, sem que a gente tenha feito as reformas de que a gente precisa para efetivamente reduzir o índice de corrupção e de impunidade no Brasil. A Lava Jato é um passo, mas, se queremos diminuir corrupção e impunidade, precisamos dar passos adicionais, precisamos de reformas das leis. Vejo um movimento de reação como aquele que aconteceu na Itália, em que se busca tirar a credibilidade de agentes públicos que atuam na operação, para, em seguida, promover os retrocessos que possam permitir que poderosos que praticaram crimes graves alcancem impunidade. Seja pela relativização, seja pela derrubada de processos, seja pela diminuição de punições, seja por mudança de prazos prescricionais, seja pelo impedimento de que as investigações avancem para o futuro. Meu receio é maior do que o encerramento de uma força-tarefa em si.
Como avalia especificamente a área de combate à corrupção do governo Bolsonaro?
Essa não é uma questão de governo. O combate à corrupção é uma questão de Estado. Precisamos mudar o sistema. Não basta retirar maçãs podres do cesto, a gente precisa mudar as condições que fazem as maçãs apodrecerem. As condições de luz, temperatura, umidade que fazem as maçãs apodrecerem. Então, não colocaria essa questão como uma questão de governo, de Poder Executivo. Coloco como uma questão de Estado, de atuação das instituições nas investigações e nos processos e como uma questão política mais ampla de atuação do Congresso Nacional e do Executivo, na formulação de políticas públicas anticorrupção.
O senhor votou em Bolsonaro para presidente?
Não comento meus posicionamentos. Isso não interfere na atuação. Agora, nossa força é técnica, imparcial e apartidária. O que posso dizer é que, entre os procuradores que hoje trabalham na força-tarefa, tivemos pessoas que votaram em diferentes linhas do espectro ideológico no ano passado. Numa das primeiras publicações que surgiram sobre as supostas mensagens de origem criminosa foi apontado um suposto viés partidário e uma suposta intenção de não eleger um determinado candidato. Essa acusação não bate com a verdade por várias razões, inclusive pelo fato de que, entre os procuradores da força-tarefa, existem pessoas que estavam no mesmo grupo de mensagens e votaram inclusive no Partido dos Trabalhadores. Então, o que temos visto é uma deturpação de supostas mensagens para formular acusações que não batem com a realidade. A Lava Jato, apenas na colaboração da Odebrecht, implicou 26 partidos políticos. Nós estamos sempre indo aonde as evidências nos levam.
Tem conversado com o ministro Moro, com quem o senhor lidou quase diariamente durante cinco anos?
Temos um relacionamento profissional de longa data, que não é um relacionamento íntimo. Você vai entrar na questão das conversas com o juiz?
Vocês não são amigos?
Exatamente. Não temos uma amizade íntima. E, dentro desse relacionamento profissional, é natural que você faça contatos eventuais sobre assuntos de interesse público. Sobre as conversas com o juiz, genericamente, é um dos grandes pontos que surgiram…
Só para ficar claro. Os senhores têm se falado?
Episodicamente, tivemos contato. Não só nesse período, mas ao longo do último ano.
Depois que foram divulgadas as mensagens?
Nós tivemos contato não só depois de saírem as supostas mensagens. Tivemos contato antes de saírem.
Mesmo depois de ele deixar a função de juiz.
Isso. Algum contato eventual sobre assuntos de interesse institucional foi feito ao longo do tempo. Mas dentro de uma… sempre focado em temas de interesse da causa de corrupção. Por exemplo, aspectos do pacote anticrime.
Sobre o contato entre procurador e juiz durante as ações, enquanto as ações estão correndo. Em algum momento o senhor viu algo de indevido em seu contato com o juiz Sergio Moro?
De novo, não reconhecemos as mensagens que têm sido atribuídas a nós. Agora, em relação a esse tema, o que é preciso esclarecer é que: tivemos contatos com o juiz, como procuradores e promotores de todo o país têm contatos com o juiz. E que esses contatos são sempre guiados pela lei e pela ética. É correto. Durante a Lava Jato, nunca frequentei a casa dele e ele nunca frequentou minha casa.
Nunca foram um à casa do outro?
Fui uma vez para que ele assinasse uma decisão, mas nunca durante a Lava Jato. Não ia a aniversários da família dele, ele não foi ao meu casamento, então não existe uma amizade íntima. Existia, sim, um relacionamento profissional. A segunda hipótese de suspeição é a hipótese de que o juiz estaria interessado no julgamento de casos específicos. E as supostas mensagens trouxeram aí cerca de 15 nomes de casos. Então, um desses nomes, pessoas desde Cunha, Sérgio Cabral, Lula. Não só político, mas tem também funcionário da Petrobras, como Eduardo Musa, Pedro Barusco, operadores financeiros.
Um leque amplo.
Exatamente. A questão é: não existe um interesse comum em casos tão diferentes. E, se existisse isso, surgiria na revisão dos casos pelos tribunais. Os tribunais apontariam que as decisões não têm base nos fatos e nas provas. A hipótese mais atacada é que o juiz teria se tornado o comandante da Lava Jato, que ele teria se tornado uma espécie de… Ele teria se despido de sua toga, colocado as vestes do Ministério Público e teria se tornado um juiz acusador. Não é compatível com o fato de que ele absolveu mais de 20% dos acusados. Essa hipótese não é compatível com o fato de que nós recorremos de 44 ou de 45 decisões, com o fato de que ele indeferiu centenas de pedidos do Ministério Público. E mais: com o fato de que surgiram essas supostas mensagens em relação a cerca de 15 nomes de mais de 450 acusados. E não é compatível ainda com o fato de que praticamos, só em 2018, aqui, na força-tarefa, mais de 36 mil atos. Então, essa hipótese de que era um juiz comandante, ela não se sustenta também diante dos fatos. No caso de Justiça e Ministério Público, existe um alinhamento de propósito. Não de visão, alinhamento do propósito. Ambos buscam o interesse público. O Ministério Público não busca a acusação e a condenação cegamente. Pede, inclusive, a absolvição quando entende que é o caso. Tudo isso faz com que, em nossa tradição, em nosso sistema, as conversas entre juízes e MP aconteçam, talvez, com mais frequência do que com determinados advogados, porque, de novo, o promotor atua em todos os casos, enquanto o advogado atua em um ou dois ou cinco. Agora, a questão é: essas conversas estiveram dentro da busca da verdade e dos valores da Justiça? Ou o juiz teve algum interesse especial em algum caso, algum interesse pessoal? Jamais houve qualquer interesse pessoal. Sempre as pessoas foram julgadas com base em provas.
O senhor já expressou sua fé publicamente. Esse episódio seria uma provação de Deus?
( 30 segundos de silêncio. ) Nunca escondi minha fé. Sou uma pessoa cristã. Algo que incomoda nisso tudo que está acontecendo é o fato de que, se nós tivéssemos agido de modo ilegal e imoral, para mim isso não seria apenas uma mera questão de lei. Seria uma questão existencial. Meu primeiro compromisso é exatamente fazer o que é certo. Por isso me incomoda tanto ver essas deturpações e ver essas falsas acusações que têm sido levantadas. Em razão de meu ponto de vista cristão, vou seguir. Me estimula a seguir caminhando com fé e fazendo o meu melhor, independentemente das circunstâncias que me rodeiam.
O senhor encara como uma provação?
( Dez segundos de silêncio. ) O fato é que ninguém jamais nos disse que seria fácil enfrentar pessoas poderosas que praticaram crimes gravíssimos contra nosso país. Ninguém jamais nos prometeu isso. Fizemos nosso papel e agora enfrentamos uma reação. Nossa expectativa é que as instituições e a sociedade protejam o trabalho feito e impeçam retrocessos.
Eu não devo, e a Lava Jato não deve. Existe uma assimetria muito grande de poder e alcance entre a deturpação da realidade e nossa capacidade de explicar o que aconteceu. Em boa parte dos casos, os veículos que estão divulgando isso não estão sequer nos dando acesso às supostas mensagens que dão base às matérias, o que prejudica nosso direito de resposta. E mesmo quando, ainda assim, a gente exerce nosso direito de resposta, ele tem constado muitas vezes em nota de rodapé, sido desprezado, tem sido objeto de matérias de menor alcance. Isso faz com que versões dobrem os fatos e dobrem a realidade. Como disse celebremente Joseph Goebbels, uma mentira repetida mil vezes passa a parecer verdade. O receio que temos é que essas deturpações, repetidas mil vezes, passem a parecer verdade.
Da Época