Bolsonaro venderá empresas que possuem dados da população

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Foto: EVARISTO SA | AFP

Um ex-servidor começa a receber ligações telefônicas oferecendo empréstimo consignado dias depois de se aposentar. Uma seguradora de veículos com quem um cidadão jamais teve contato lhe oferece um novo seguro semanas antes de vencer o contrato que está em vigência.O timing não é mágica. É uma estratégia planejada, com base em informações confidenciais mantidas pelo Governo e consideradas valiosíssimas para qualquer empresa que busca dados de potenciais clientes. O que elas têm em comum é que todas são processadas e armazenadas por duas lucrativas companhias públicas brasileiras que o Governo Jair Bolsonaro (PSL) pretende privatizar, o Serpro e a Dataprev. E, com isso, de uma hora para outra, uma companhia qualquer pode passar a ter acesso, por exemplo, a todos os dados que o contribuinte declarou em seu imposto de renda.

Só no ano passado o Serpro teve uma receita líquida de 2,7 bilhões de reais, e a Dataprev, de 1,26 bilhão de reais. A primeira possui cerca de 9.100 funcionários concursados, a segunda, 3.400. No mercado, juntas, as empresas têm o valor estimado de seis bilhões de reais, mas as informações que armazenam ainda não têm um preço calculado. Elas possuem dados de toda a população brasileira: da data de nascimento ao quanto se contribuiu para Previdência ou pagou de impostos ao longo da vida. Entre os interessados em adquiri-las estão fundos de investimentos e empresas de tecnologia da informação nacionais e estrangeiras. A transação depende de aprovação do Congresso Nacional.

Os estudos para a venda das duas empresas foram anunciados há cerca de duas semanas. Estão sendo feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e a expectativa é que a venda se concretize no ano que vem. No último dia 29 de agosto estava prevista uma audiência pública na Câmara da qual participariam os presidentes do Serpro, Caio Paes de Andrade, e da Dataprev, Christiane Edington. Diante da mobilização de servidores para tentar frear a venda, na noite anterior ao debate, ambos cancelaram a participação no encontro.

No Serpro há 985 sistemas de informação que incluem a declaração do imposto de renda, a emissão de passaportes e carteiras de motoristas, o pagamento do Bolsa Família, os registros sobre veículos roubados ou furtados em todo o país, dados da Agência Brasileira de Inteligência, do sistema de comércio exterior e de transações que passaram pelos portos e aeroportos nacionais, entre outros. Na Dataprev, seus 720 sistemas possuem todos os registros de nascimento e óbitos no país, cadastros trabalhistas de nacionais e estrangeiros, detalhes das empresas registradas em todos os Estados, além do processamento dos pagamentos de aposentadorias, pensões e seguro desemprego.

A Dataprev recentemente também abriu uma licitação para adquirir uma tecnologia de reconhecimento facial e de impressão digital, contestada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), que pede que ela seja suspensa. O órgão afirma que é preciso, primeiro, que a empresa de dados resolva “o sistemático vazamento de dados dos beneficiários do INSS”. “Esses vazamentos criaram uma cadeia perversa, onde os dados são utilizados na oferta abusiva de crédito consignado aos aposentados, o que gera o espiral de superendividamento”, afirma Diogo Moyses, coordenador do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, em uma nota do órgão que ilustra como os dados já são usados por interesses próprios de empresas.

O temor de especialistas e dos servidores é que essas informações passem a ser comercializadas sem a devida autorização dos cidadãos que estão cadastrados nesses bancos de dados de forma sistemática. É comum ouvir entre os estudiosos do assunto que dados são, hoje, o novo petróleo. Por meio deles consegue-se direcionar uma venda ou definir quem pode ou não ter acesso a crédito junto a instituições financeiras, por exemplo.  “São informações sensíveis que não deveriam cair nas mãos de uma empresa privada, sob o risco de ferir até a soberania nacional”, afirmou o diretor do Sindicato de Processamento de Dados do Distrito Federal, Kléber Santos. Funcionário do Serpro há oito anos, Santos é um dos servidores que encampam uma campanha contrária à privatização do órgão.

“Se eu resolvo montar um dossiê contra uma pessoa, busco no seu histórico do imposto de renda o quanto arrecada, qual é o seu patrimônio. Hoje, essas informações estão só nas mãos do Estado. Após privatizar, correm o risco de serem comercializadas livremente”, alerta a servidora Socorro Laco, representante da Coordenação Nacional de Campanha da Dataprev.

Advogado e especialista em proteção de dados pessoais, Bruno Bioni diz que hoje a proteção de dados pessoais é a nossa própria identidade. “Na medida em que o cidadão é enxergado, julgado, não com base no rosto deles, mas com o que uma base de dados diz sobre ele, a proteção de dados pessoais passa a ser um eixo e um vetor de sua própria cidadania”, diz Bioni, proprietário da Data Privacy. “Olhar como os dados vão ser bem protegidos talvez seja hoje o principal alicerce na relação entre estado e cidadão”, acrescenta.

Na opinião de Bioni, contudo, a privatização não seria prejudicial às informações. Segundo ele, o que importa saber é se os dados coletados serão usados somente para o fim pelo qual foram obtidos. Por exemplo, se um estudante requereu um financiamento estudantil, as informações que ele repassou ao Governo só podem ser analisadas para essa finalidade, não poderiam basear qualquer outra análise, tampouco serem vendidas. “A finalidade pela qual o dado está sendo confiado, ela segue o dado. Existe essa limitação para que as empresas usem esse banco de dados”.

No segundo semestre de 2020, entrará em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, que prevê maior rigor no controle de quais informações podem ser usadas por empresas e governos. Além disso, autoriza que apenas o que for expressamente autorizado seja repassado para os sistemas.

Procurado, o Governo informou, por intermédio do Ministério da Economia, que as empresas devem ser vendidas para seguir a lógica traçada pelo ministro Paulo Guedes, de que o maior número de companhias públicas passarão para a iniciativa privada. “A orientação é reduzir o tamanho do Estado, privatizando o máximo de empresas e focando naquilo que o Estado deveria cuidar como saúde, educação, segurança e infraestrutura”, disse a pasta em nota. A gestão Bolsonaro/Guedes acredita que não faz sentido o poder público ter empresas de processamento de informações. “O Governo entende que a manutenção de dados da população sob guarda dessas empresas não garante sua proteção mais do que sob guarda de empresas privadas”. Como exemplo, o Ministério da Economia cita o sigilo bancário dos correntistas, que costumam ser protegidos pelas instituições financeiras particulares ou públicas.

Do El País