O beijo da morte do PIG
Finalmente chegamos a uma situação inédita na história brasileira. O Brasil está sem oposição – ao menos visível. O tiro de misericórdia no sistema de pesos e contrapesos da democracia, composto de governo e oposição, foi editorial do Estadão do último domingo que se derramou em elogios a Dilma Rousseff. Mas sem esquecer de espicaçar Lula, claro.
O título do texto é inacreditável: “Bom senso e coerência”. Ontem, era um “poste”, “terrorista”, “vagabunda” etc. Hoje, é sensata e coerente. O texto ainda diz que o único acerto de Lula foi indicá-la para sucedê-lo. Dali em diante, começa a elencar insinuações sobre medidas de Dilma para se aproximar da direita midiática que a reabilitariam da “má companhia” do ex-presidente.
– Lula seria “espalhafatoso” e Dilma, “sóbria”.
– Lula virava as costas para a mídia e Dilma a prestigia indo às suas festas, aos seus programas etc.
– Lula cedia aos sindicatos e Dilma os enquadra, como na questão do salário mínimo.
– Lula era antiamericano e terceiro-mundista e Dilma tem mentalidade cosmopolita – por se aproximar dos EUA, o que o antecessor não fez.
– Lula seria estatista e Dilma estaria prestes a privatizar aeroportos.
– Lula apoiava “ditaduras” como a do Irã e Dilma as critica.
E por aí vai.
O fato é que não deixa de ser uma estratégia. As diferenças não são tão grandes assim, ainda que existam. Mas os elogios a Dilma e as deferências dela com a mídia que infernizou seu padrinho político por oito anos – e, antes, por mais de uma década, a partir de 1989 – estão reduzindo a pó a militância na internet que foi tão importante para ambos.
As trocas de insultos entre os militantes e simpatizantes do PT que não se importam com a aproximação de Dilma com a direita e os que não conseguem engolir essa aproximação já provocaram um efeito que vai se tornando irreversível: uma questão republicana vai se tornando pessoal.
Quem apóia a aproximação de Dilma com a direita e quem não aceita, logo nem se lembrarão da razão pela qual viraram inimigos. “Puxa-sacos”, dizem uns; “PIG do B”, dizem outros. Não há mais diálogo. Se Dilma precisar de apoio da militância na internet, perderá, no mínimo, metade do que tinha.
O blogueiro Josias de Souza, um dos “autênticos” da direita que também não digeriu a aproximação de seus patrões com Dilma – ao lado de Ricardo Noblat e Reinaldo Azevedo –, destrinchou o comportamento dela. Atribui ao marqueteiro João Santana, que cuida de sua imagem, a estratégia de distingui-la de Lula.
Santana é o mesmo marqueteiro que impediu Dilma de reagir às agressões de Serra no primeiro turno da eleição presidencial do ano passado. Até hoje, acho que se ela não tivesse contrariado seus conselhos e ido para cima do adversário no primeiro debate após a eleição em primeiro turno, hoje estaríamos chamando o tucano de presidente.
Um governo sem oposição serve a quem? Cansaram de me acusar de ser pago por Lula para defendê-lo. O fato, porém, é que sempre disse que não criticava o governo Lula porque não queria ser apenas mais um entre a horda de seus detratores que tentava sabotar o seu governo, prejudicando o país.
Agora, estou livre para apoiar ou criticar construtivamente. Apoiei a reunião com Obama, divirjo da aproximação com FHC e com a mídia. Essa é a postura de cidadão, de quem está interessado no país. Todavia, não significa que quem está apoiando incondicionalmente Dilma está agindo de má fé ou por interesse.
Entre os que estão apoiando incondicionalmente o governo Dilma, há os que não suportam a idéia de que lutaram tanto para elegê-la e, agora, estão sendo traídos. Esses são a maioria esmagadora. E há os que têm interesses no governo, que ganham ou esperam ganhar com ele e que são ínfima minoria.
Nada disso significa, porém, que um ou outro lado não possa ter razão. Eu posso estar sendo radical ou os que apóiam Dilma incondicionalmente podem estar sendo ingênuos. Em pouco tempo, porém, saberemos a verdade.
O fato é que a imprensa tradicionalmente golpista está aproveitando muito bem a estratégia burra do marqueteiro. Basta ler os comentários nos blogs para ver que a força que Lula teve na internet, e que o ajudou muito a eleger a sucessora, está sendo reduzida à metade – e deve diminuir ainda mais.
O feedback que os comentários dos leitores me dão permite ver que cada vez mais gente vai mudando de opinião e se decepcionando. Em toda a blogosfera, quem tiver paciência de ler o teor dos comentários verá que os decepcionados vão aumentando.
Além disso, o fenômeno mais espantoso é o dos trolls e os comentaristas reais de direita que estão se desmanchando em elogios a Dilma, pois seguem cegamente o que dizem Globos, Folhas, Vejas e Estadões.
A estratégia do marqueteiro João Santana está trocando parte da maioria que venceu a eleição por parte da minoria que perdeu. Quem tiver a menor noção de matemática descobrirá que não é um bom negócio.
Dilma e Lula podem esfriar o clima e as pessoas responsáveis, interessadas em fazer com que este governo dê certo, podem tomar algumas medidas para evitar a virtual destruição da imensa militância que ajudou a eleger a presidenta.
Em primeiro lugar, seria confortador Lula dizer publicamente que está satisfeito com o governo que Dilma está fazendo. Sua ausência no rega-bofe para Obama fez muita gente enxergar desaprovação na aproximação com os Estados Unidos – e, sobretudo, com FHC, que aproveitou para ironizar o desafeto durante o evento.
Em segundo lugar, peço que paremos de nos agredir por divergência quanto à postura de Dilma. Tem gente, das duas facções, que há semanas não faz outra coisa a não ser criticar e acusar quem pensa diferente. É tudo o que a direita quer. Depois de tantas palavras duras, a reconciliação fica difícil. E sem interação, a internet perderá quase toda força, politicamente.
A internet só teve o papel que teve politicamente nos últimos anos porque havia uma rede de colaboração. Sem essa rede, seria inexpressiva. Além disso, entre as pessoas mais simples o mito Lula é muito forte e a tese da “traição” de Dilma a Lula vai se espalhando, ao menos em São Paulo. Aí, talvez, uma das razões da insistência da mídia em diferenciá-los.
Quem não gosta de elogio? É natural. Dilma continua sendo um ser humano. Mas, repito, esses elogios da mídia são como o beijo da morte da máfia italiana. Contêm veneno, que está pulverizando sua base mais alargada de apoio a cada dia. E quem demoniza o outro por concordar ou discordar disso, faz o jogo da direita golpista.