Gisele e a sina das mulheres

Crônica

A fabricante de lingerie Hope aprovou a sugestão de sua agência de publicidade e pôs no ar uma campanha que tem tudo que ver consigo, segundo será demonstrado mais adiante. A peça foi intitulada como “Hope ensina”. Essa campanha pretende “ensinar” como “a sensualidade” pode “deixar qualquer homem derretido”. A agência de publicidade que a criou chama-se Giovanni+Draftfcb.

A campanha usa a modelo internacional Gisele Bündchen para “estimular as mulheres brasileiras a fazerem uso de seu charme” ao contarem aos seus maridos – e namorados ou amantes, claro – eventuais atos de irresponsabilidade que venham a cometer, tais como provocar acidentes de trânsito ou gastar dinheiro descontroladamente.

Pouco após o início da veiculação da campanha, no último dia 20 de setembro, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) recebeu reclamações. Após deliberação interna, o órgão decidiu tomar providências. Oficiou ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) pedido de suspensão da propaganda e enviou carta ao diretor da Hope Lingerie, Sylvio Korytowski, manifestando repúdio à campanha.

Houve forte reação da mídia. No mínimo, a iniciativa da Secretaria do governo federal que trata de “Políticas para as Mulheres” foi chamada de “mal-humorada”. No máximo, a Secretaria foi acusada de prevaricação. A revista Exame, da Editora Abril, entrevistou o diretor de criação da campanha que colocou Gisele Bündchen para ensinar as mulheres como deveriam se portar. A revista diz que “Adilson Xavier, da Giovanni+Drafitfcb, ainda tenta entender o que está acontecendo”.

O publicitário, que atende pelo cargo de presidente e diretor nacional de Criação da agência, disse ser “surpreendente e, em alguns momentos, ridícula a polêmica criada em torno das peças”. E afirmou que a sociedade brasileira “Está perdendo o bom humor”.

Outros órgãos de imprensa, igualmente furiosos, também disseram que a Secretaria de Políticas para as Mulheres não se manifestou, há alguns anos, quando uma garota infratora e menor de idade foi presa em uma cela cheia de homens, onde foi seguidamente estuprada.

É uma idéia de jerico porque crimes contra mulheres acontecem todos os dias e não dá para uma Secretaria que cuida de políticas públicas para um setor da sociedade ficar comentando todos os casos de violência. A cobrança deveria se dirigir às autoridades competentes, portanto. Sobretudo aos governadores de Estado, responsáveis pela Segurança Pública e pelo sistema penal.

Particularmente, porém, não sei se seria o caso de coibir essa campanha publicitária. Claro que não pelos motivos acima. Representar as mulheres brasileiras como irresponsáveis que saem gastando além da conta e provocando acidentes de trânsito, como se fossem crianças mimadas, é uma idéia para lá de estúpida. Mas a propaganda reproduz uma realidade desta sociedade, não se pode negar.

Contudo, não gostei do estímulo. Ao ver Gisele Bündchen seminua se oferecendo para pagar com sexo ao marido pelos prejuízos financeiros que lhe causou, pensei em prostituição. Não gostaria que alguma de minhas filhas moças agisse assim. Aliás, como elas têm o padrão físico da Gisele – são esguias e altas –, a propaganda da Hope me tocou ainda mais.

Logo me pus a pensar que, infelizmente, muitas mulheres gostam de se enquadrar no estereótipo que a Hope criou… Ou melhor, que reproduziu. De fato, boa parte delas sempre assimilou o papel de “gostosona burra”, de beldade mimada e cheia de vontades que não precisa agir com responsabilidade por ter os atributos físicos que se enquadram no padrão de beleza vigente. Isso não começou hoje.

A mensagem institucional que a Hope divulga em seu site, no entanto, é risível. Por achar que se dirige a um público que quer pensar pouco e se exibir muito, dedica a ele meia dúzia de linhas (em mau português) dizendo uma tremenda bobagem, transmitindo uma mensagem sem pé nem cabeça.

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A HOPE nasceu de um sonho, da esperança de transformar a vida das mulheres através do conforto absoluto.

Parece ambicioso, não?

Assim como foi lançar uma das primeiras marcas de moda íntima do país, no ano de 1966, um território jamais explorado em terras tupiniquins.

Essa vontade, se tornou a alma da marca mais amada pelas brasileiras, e se traduz no desejo de antecipar as necessidades de suas fãs

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“Transformar a vida das mulheres através do conforto”. Essa é a “mensagem” da Hope às suas “fãs” e ao dinheiro delas – ou de seus maridos, como parece pensar a empresa. Como se alguém alguma vez já tivesse mudado alguma coisa, sobretudo a própria vida, “através do conforto”…

Claro que não se espera que uma campanha publicitária de lingerie estimule as mulheres a se engajarem politicamente e a não serem sensuais. Contudo, a campanha estimula a mulher a conseguir o que quer dos homens, sobretudo em termos financeiros, através da sensualidade, ou seja, do sexo. Estimula garotas a conseguirem para si o “coronel” que tantas buscam, hoje em dia. Algum coroa gordão e endinheirado, talvez…

Não criei minhas filhas para isso. Eu e a minha mulher as ensinamos a não dependerem de homem nenhum, a jamais se fiarem nos intensos poderes de sedução que as mulheres conservam só enquanto são jovens e possuem atributos físicos que se enquadram no padrão de beleza vigente. E a sempre levarem em conta que os padrões de beleza femininos mudaram muito através dos tempos.

Costumo brincar com as minhas filhas dizendo a elas que se vivessem na Idade Média, por exemplo, provavelmente morreriam solteiras, assim como Gisele, pois, naquele tempo, mulher magra era desprezada assim como são hoje as “cheinhas”.

Mas, enfim, a propaganda polêmica se dirige a um segmento da sociedade, a mulheres (muitas jovens e esguias como Gisele e outras, nem tanto) que almejam ser irresponsáveis, mimadas e que, sendo belas e jovens, divertem-se com o poder que exercem sobre os homens.

Há, porém, a nova mulher, aquela que pretendi que minhas filhas se tornassem, que não dispensa a sensualidade mas que está longe de usá-la para conseguir dinheiro, para poder ser irresponsável sem arcar com as conseqüências. A mulher que quer ser bela e desejada, mas que entende que esse alto poder de sedução das mulheres é fugaz e que, portanto, assim deve ser encarado.

A filha Gabriela, por exemplo, apesar de ser bela (de acordo com os padrões de beleza vigentes) e jovem, não tem homem nenhum que a banque, que lhe perdoe por gastar descontroladamente seu dinheiro ou por danificar sua propriedade e causar risco a terceiros. Trabalha muito para se sustentar do outro lado do mundo, na Austrália, pagando R$ 4 mil de faculdade todo mês e o próprio aluguel.

O namorado a convidou para morar consigo. Tem situação financeira confortável. Ela não teria mais que limpar a casa de ninguém ou que cuidar dos filhos dos outros. Mas não aceitou. Eu e minha mulher ensinamos às meninas que não devem depender de ninguém mais, só delas mesmas. E que devem buscar carreira e realização intelectual. Enfim, a independência.

Não quero que as minhas meninas passem o fim dos seus dias amarguradas enquanto vêem a própria beleza e o viço da juventude esmaecerem. Não quero que passem a vida tentando se agarrar desesperadamente a um dom da natureza que o tempo macula e extirpa de todas as mulheres, deixando a elas só o patrimônio moral e intelectual que amealharam. Aliás, como é com os homens, como é com qualquer um.

Sob esse prisma, a propaganda da Hope é um lixo. Um lixo cultural, um lixo ideológico e um lixo de criatividade. De bom mesmo, essa propaganda só tem a bela Gisele.