O único país governado pela mídia
Em agosto de 2007, pouco após o Supremo Tribunal Federal ter aceitado abrir o inquérito do “mensalão”, o ministro Ricardo Lewandowsky foi alvo de monitoramento pelo jornal Folha de São Paulo enquanto almoçava em um restaurante de Brasília. Ele conversava ao celular e, a poucos metros de si, uma repórter ouvia e anotava a conversa sem que o espionado percebesse.
Antes de prosseguir, há que ler, abaixo, a matéria publicada por esse jornal no penúltimo dia de agosto de 2007.
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FOLHA DE SÃO PAULO
30 de agosto de 2007
Lewandowski afirma que “imprensa acuou o Supremo” no julgamento do mensalão
“Todo mundo votou com a faca no pescoço”, declara o autor do único voto contra a imputação do crime de quadrilha ao petista
VERA MAGALHÃES
DO PAINEL, EM BRASÍLIA
Em conversa telefônica na noite de anteontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal), reclamou de suposta interferência da imprensa no resultado do julgamento que decidiu pela abertura de ação penal contra os 40 acusados de envolvimento no mensalão. “A imprensa acuou o Supremo”, avaliou Lewandowski para um interlocutor de nome “Marcelo”. “Todo mundo votou com a faca no pescoço.” Ainda segundo ele, “a tendência era amaciar para o Dirceu”.
Lewandowski foi o único a divergir do relator, Joaquim Barbosa, quanto à imputação do crime de formação de quadrilha para o ex-ministro da Casa Civil e deputado cassado José Dirceu, descrito na denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, como o “chefe da organização criminosa” de 40 pessoas envolvidas de alguma forma no escândalo.
O telefonema de cerca de dez minutos, inteiramente testemunhado pela Folha, ocorreu por volta das 21h35. Lewandowski jantava, acompanhado, no recém-inaugurado Expand Wine Store by Piantella, na Asa Sul, em Brasília.
Apesar de ocupar uma mesa na parte interna do restaurante, o ministro preferiu falar ao celular caminhando pelo jardim externo, que fica na parte de trás do estabelecimento, onde existem algumas mesas -entre elas a ocupada pela repórter da Folha, a menos de cinco metros de Lewandowski.
A menção à imprensa se deve à divulgação na semana passada, pelo jornal “O Globo”, do conteúdo de trocas de mensagens instantâneas pelo computador entre ministros do STF, sobretudo de uma conversa entre o próprio Lewandowski e a colega Cármen Lúcia.
Nos diálogos, os dois partilhavam dúvidas e opiniões a respeito do julgamento, especulavam sobre o voto de colegas e aludiam a um suposto acordo envolvendo a aposentadoria do ex-ministro Sepúlveda Pertence e a nomeação -que veio a se confirmar- de Carlos Alberto Direito para seu lugar. Lewandowski chegou a relacionar o suposto acordo ao resultado do julgamento.
Ontem, na conversa de cerca de dez minutos com Marcelo, opinou que a decisão da Corte poderia ter sido diferente, não fosse a exposição dos diálogos. “Você não tenha dúvida”, repetiu em seguidas ocasiões ao longo da conversa.
O fato de os 40 denunciados pelo procurador-geral terem virado réus da ação penal e o dilatado placar a favor do recebimento da denúncia em casos como o de Dirceu e de integrantes da cúpula do PT surpreenderam advogados de defesa e o governo. Na véspera do início dos trabalhos, os ministros tinham feito uma reunião para “trocar impressões” sobre o julgamento, inédito pelo número de denunciados e pela importância política do caso.
Em seu voto divergente no caso de Dirceu, Lewandowski disse que “não ficou suficientemente comprovada” a formação de quadrilha no que diz respeito ao ex-ministro. “Está se potencializando o cargo ocupado [por Dirceu] exatamente para se imputar a ele a formação de quadrilha”, afirmou.
Enrique Ricardo Lewandowski, 58, foi o quinto ministro do STF nomeado por Lula, em fevereiro do ano passado, para o lugar de Carlos Velloso. Antes, era desembargador do Tribunal de Justiça de SP.
No geral, o ministro foi o que mais divergiu do voto de Barbosa: 12 ocasiões. Além de não acolher a denúncia contra Dirceu por formação de quadrilha, também se opôs ao enquadramento do deputado José Genoino nesse crime, no que foi acompanhado por Eros Grau.
No telefonema com Marcelo, ele deu a entender que poderia ter contrariado o relator em mais questões, não fosse a suposta pressão da mídia. Ao analisar o efeito da divulgação das conversas sobre o tribunal, disse que, para ele, não haveria maiores conseqüências: “Para mim não ficou tão mal, todo mundo sabe que eu sou independente”. Ainda assim, logo em seguida deu a entender que, não fosse a divulgação dos diálogos, poderia ter divergido do relator em outros pontos: “Não tenha dúvida. Eu estava tinindo nos cascos”.
Lewandowski fez ainda referência à nomeação de Carlos Alberto Direito, oficializada naquela manhã pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Negou ao interlocutor que fizesse parte de um grupo do STF contrário à escolha do ministro do Superior Tribunal de Justiça para a vaga de Pertence, como se depreende da conversa eletrônica entre ele e Cármen Lúcia. “Sou amigo do Direito. Todo mundo sabia que ele era o próximo. Tinha uma campanha aberta para ele.”
Ainda em tom queixoso, gesticulando muito e passando várias vezes a mão livre pela vasta cabeleira branca enquanto falava ao celular, Lewandowski disse que a prática de trocar mensagens pelos computadores é corriqueira entre os ministros durante as sessões. “Todo mundo faz isso. Todo mundo brinca.”
Já prestes a encerrar a conversa, o ministro, que ainda trajava o terno azul acinzentado e a gravata amarela usados horas antes, no último dia de sessão do mensalão, procurou resignar-se com a exposição inesperada e com o resultado do julgamento. “Paciência”, disse, várias vezes. E ainda filosofou: “Acidentes acontecem. Eu poderia estar naquele avião da TAM”.
Além dos trechos claramente identificados pela reportagem, a conversa teve outras considerações sobre o julgamento, cuja íntegra não pôde ser depreendida, uma vez que Lewandowski caminhou para um lado e para outro durante o telefonema.
Logo após desligar, ao voltar para o salão principal do restaurante, Lewandowski se deteve para cumprimentar um dos proprietários, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, figura muito conhecida em Brasília e amigo de vários advogados e políticos -entre eles o próprio Dirceu, citado na conversa.
Lewandowski ficou pouco mais de uma hora no restaurante. A Expand Wine Store by Piantella é um misto de loja de vinhos, restaurante e bar localizada na quadra 403 Sul, no Plano Piloto. Pertence ao mesmo grupo de proprietários do Piantella, o mais tradicional restaurante da capital federal, ponto de encontro de políticos.
Só depois da conversa com Marcelo é que Lewandowski sentou-se e fez os pedidos: uma garrafa de vinho argentino Santa Júlia, R$ 49 segundo o cardápio, uma porção mista de queijos e outra de presunto, cada uma ao preço de R$ 35. No telão localizado às costas do ministro, eram exibidos DVDs musicais -um show do grupo Simply Red e uma apresentação da cantora Ana Carolina.
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Como se vê, não é de hoje que se enxerga o poder único no mundo que tem a mídia brasileira. Um poder que não existe igual em nenhum outro país que se consiga lembrar e que mantenha sob seu tacão o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Claro que a mídia é poderosa em toda parte, mas, no Brasil, ninguém ousa desafiá-la de frente.
Ontem, por exemplo, o portal do jornal O Estado de São Paulo publicou matéria em que relata que “O governo ficou surpreso com a rapidez com a qual o STF abriu inquérito para investigar denúncias de envolvimento do ministro [do Esporte, Orlando Silva] em esquemas de corrupção no Esporte”, apesar de que quem instou o procurador-geral da República a provocar o Supremo foi o próprio ministro, de quem a mídia anunciou a demissão ao fim da manhã desta quarta-feira.
Faca e pescoço voltam a se encontrar.
Olhemos ao redor de nós, aqui nas Américas. Em que país a mídia demite ministros por capricho ou “hierarquiza” o debate público, por exemplo, sem qualquer oposição? Há tantas agendas que é impossível inserir no debate público por a mídia não querer que sejam discutidas que mal dá para contar. A mais cara aos leitores desta página, aliás, é a do marco regulatório das comunicações, que jamais foi discutido com seriedade e profundidade.
O procurador-geral da República e o Supremo Tribunal Federal trataram de investir contra o ministro Orlando Silva com uma rapidez incompatível com os indícios contra si. Mesmo que seja absolvido, materializou-se uma situação de absoluta inviabilidade para qualquer ministro deste governo exercer o cargo, pois qualquer irregularidade em sua pasta provocará o processo a que, como em 2007, o país está assistindo outra vez.
Claro que dirão que o ministro só caiu porque há fortes suspeitas de irregularidades em sua pasta, mas o que não será dito é que nenhuma administração pública, no Brasil, pode dizer que não tem contra si ao menos denúncias e indícios iguais e, no entanto, só o que vem à baila com intensidade são denúncias e escândalos contra governos do PT. Apesar disso, ainda há vida no lado “errado”.
Na próxima quinta-feira, por exemplo, em um esforço desesperado de setores da sociedade para evitar que o país sucumba de vez diante da censura e da ditadura midiáticas haverá um ato público diante da Assembléia Legislativa de São Paulo para exigir que aquela Casa instaure Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar denúncia de venda de emendas que afeta diretamente o governo Geraldo Alckmin e o PSDB.
Abaixo, o anúncio de manifestação à qual este blogueiro comparecerá.
Apesar de a esquerda mostrar que parte dela não se rende à seletividade ética da mídia, que passou a minimizar ou a esconder como pode escândalos envolvendo seus aliados enquanto carnavaliza as acusações destes em relação aos seus adversários, o horizonte parece sombrio. Dilma não conseguirá governar, assim. País nenhum funciona com ministros caindo a cada dois meses, se tanto. É administrativamente inviável.
A situação sociopolítica do Brasil é inédita. Não se conhece experiência igual em qualquer outra parte. Não há um só país de relevo nas três Américas em que a mídia faça e desfaça como aqui. E não é porque não tem obtido vitórias eleitorais que isso significa que ela não governa. O voto popular já foi massacrado bem mais de uma vez, neste país. O momento, pois, é de profunda reflexão. Jogar a toalha, porém, não resolverá nada.