A ditadura envergonhada
Causou comoção a foto de uma Dilma Rousseff ainda jovem sendo inquirida por militares publicada pela revista Época que chegou as bancas neste fim de semana. O olhar altivo daquela menina de 22 anos, após três semanas de sevícias na prisão, e os militares escondendo os rostos simbolizam perfeitamente aquele período de trevas.
A imagem traduz a história. Hoje, passadas quatro décadas, Dilma continua olhando altivamente para os militares. Dilma venceu.
E o que é mais: sua vitória já se pronunciava naquela foto. Sua altivez representa a de toda uma geração de heróis que, pondo a própria vida de lado, não hesitou em se atirar em uma luta épica para libertar a nação do jugo de um bando de dementes que após meio século continuam mantendo mentiras que, mais do que defesa contra o braço longo da lei, constituem um anteparo à vergonha que a verdade lhes traz, o que os leva a tentarem sufocá-la ad aeternum.
Foi-me interessante deparar com essa foto na manhã de sábado porque pouco antes recebera mensagem de leitora contendo link para texto que constitui mais uma das incontáveis farsas que esbirros dos déspotas da ditadura militar fazem diuturnamente na tentativa de reescrever a história.
Faz tempo que o texto que recebi circula na internet. Contém suposta “confissão” de uma suposta jornalista sobre sua suposta atuação como “guerrilheira” durante a ditadura. A mulher (?) criou um blog no meio do ano passado, no auge de uma campanha eleitoral que estava sendo vencida por alguém que atuou como “guerrilheira” naquele período.
Na verdade, entendi o texto mais como uma ficção escrita para simbolizar o que na verdade teria se passado com uma mulher que estava prestes a se tornar presidente da República.
A suposta autora do texto que reproduzo a seguir se diz Miriam Macedo e o texto que supostamente escreveu – e que foi publicado pela maioria dos sites e blogs de extrema-direita – intitula-se “A verdade: eu menti”.
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A verdade: eu menti.
Eu, de minha parte, vou dar uma contribuição à Comissão da Verdade, e contar tudo: eu era uma subversivazinha medíocre e, tão logo fui aliciada, já caí (jargão entre militantes para quem foi preso), com as mãos cheias de material comprometedor.
Despreparada e festiva, eu não tivera nem o cuidado de esconder os exemplares d’A Classe Operária, o jornal da organização clandestina a que eu pertencia (a AP-ML, ala vermelha maoísta do PC do B, a mesma que fazia a Guerrilha do Araguaia, no Pará).
Os jornais estavam enfiados no meio dos meus livros numa estante, daquelas improvisadas, de tijolos e tábuas, que existiam em todas as repúblicas de estudantes, em Brasília naquele ano de 1973.
Já relatei o que eu fazia como militante*. Quase nada. A minha verdadeira ação revolucionária foi outra, esta sim, competente, profícua, sistemática: MENTI DESCARADAMENTE DURANTE QUASE 40 ANOS!* (O primeiro texto fala em 30 anos. Eu fui fazer as contas, são quase 40 anos, desde que comecei a mentir sobre os ‘maus tratos’. Façam as contas, fui presa em 20 de junho de 73. Em 2013, terão se passado 40 anos.)
Repeti e escrevi a mentira de que eu tinha tomado choques elétricos (por pudor, limitei-me a dizer que foram poucos, é verdade), que me deram socos e empurrões, interrogaram-me com luzes fortes, que me ameaçaram de estupro quando voltava à noite dos interrogatórios no DOI-CODI para o PIC e que eu passava noites ouvindo “gritos assombrosos” de outros presos sendo torturados (aconteceu uma única vez, por pouquíssimos segundos: ouvi gritos e alguém me disse que era minha irmã sendo torturada. Os gritos cessaram – achei, depois, que fosse gravação – e minha irmã, que também tinha sido presa, não teve um único fio de cabelo tocado).
Eu também menti dizendo que meus algozes, diversas vezes, se divertiam jogando-me escada abaixo, e, quando eu achava que ia rolar pelos degraus, alguém me amparava (inventei um ‘trauma de escadas”, imagina). A verdade: certa vez, ao descer as escadas até a garagem no subsolo do Ministério do Exército, na Esplanada dos Ministérios, onde éramos interrogados, alguém me desequilibrou e outro me segurou, antes que eu caísse.
Quanto aos ‘socos e empurrões’ de que eu dizia ter sido alvo durante os dias de prisão, não houve violência que chegasse a machucar; nada mais que um gesto irritado de qualquer dos inquisidores; afinal, eu os levava à loucura, com meu enrolation. Eu sou rápida no raciocínio, sei manipular as palavras, domino a arte de florear o discurso. Um deles repetia sempre: “Você é muito inteligente. Já contou o pré-primário. Agora, senta e escreve o resto”.
Quem, durante todos estes anos, tenha me ouvido relatar aqueles 10 dias em que estive presa, tinha o dever de carimbar a minha testa com a marca de “vítima da repressão”. A impressão, pelo relato, é de que aquilo deve ter sido um calvário tão doloroso que valeria uma nota preta hoje, os beneficiados com as indenizações da Comissão da Anistia sabem do que eu estou falando. Havia, sim, ameaças, gritos, interrogatórios intermináveis e, principalmente, muito medo (meu, claro).
Torturada?! Eu?! Ma va! As palmadas que dei em meus filhos podem ser consideradas ‘tortura inumana’ se comparadas ao que (não) sofri nas mãos dos agentes do DOI-CODI.
Que teve gente que padeceu, é claro que teve. Mas alguém acha que todos nós que saíamos da cadeia contando que tínhamos sido ‘barbaramente torturados’ falávamos a verdade?
Não, não é verdade. A maioria destas ‘barbaridades e torturas’ era pura mentira! Por Deus, nós sabemos disto! Ninguém apresentava a marca de um beliscão no corpo. Éramos ‘barbaramente torturados’ e ninguém tinha uma única mancha roxa para mostrar! Sei, técnica de torturadores. Não, técnica de ‘torturado’, ou seja, mentira. Mário Lago, comunista até a morte, ensinava: “quando sair da cadeia, diga que foi torturado. Sempre.”
Na verdade, a pior coisa que podia nos acontecer naqueles “anos de chumbo” era não ser preso(sic). Como assim todo mundo ia preso e nós não? Ser preso dava currículo, demonstrava que éramos da pesada, revolucionários perigosos, ameaça ao regime, comunistas de verdade! Sair dizendo que tínhamos apanhado, então! Mártires, heróis, cabras bons.
Vaidade e mau-caratismo puros, só isto. Nós saíamos com a aura de hérois e a ditadura com a marca da violência e arbítrio. Era mentira? Era, mas, para um revolucionário comunista, a verdade é um conceito burguês, Lênin já tinha nos ensinado o que fazer.
E o que era melhor: dizer que tínhamos sido torturados escondia as patifarias e ‘amarelões’ que nos acometiam quando ficávamos cara a cara com os “ômi”. Com esta raia miúda que nós éramos, não precisava bater. Era só ameaçar, a gente abria o bico rapidinho.
Quando um dia, durante um interrogatório, perguntaram-me se eu queria conhecer a ‘marieta’, pensei que fosse uma torturadora braba. Mas era choque elétrico (parece que ‘marieta’ era uma corruptela de ‘maritaca’, nome que se dava à maquininha usada para dar choque elétrico). Eu não a quis conhecer. Abri o bico, de novo.
Relembrar estes fatos está sendo frutífero. Criei coragem e comecei a ler um livro que tenho desde 2009 (é mais um que eu ainda não tinha lido): “A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Editora Ser, publicado em 2007. Serão quase 600 páginas de ‘verdade sufocada”? Vou conferir.
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Pode parecer incrível que alguém renegue a tortura e os assassinatos generalizados que ocorreram então, nos anos mais duros de uma ditadura que tardou duas décadas inteiras para acabar, mas o fato é que absurdos como esses são ditos reiteradamente na grande imprensa e até na televisão, no rádio etc.
As centenas de mortos e desaparecidos, os sobreviventes dos centros de tortura que carregam até hoje no próprio corpo as marcas das sevícias, as matérias jornalísticas, os livros e até as provas fotográficas da selvageria burra dos militares como a foto do jornalista Wladimir Herzog em cena de “suicídio” no DOI-CODI que uma criança de dez anos poderia concluir facilmente ser uma farsa, o texto supra reproduzido desmente.
Aí se entende não só a motivação obstinada para se instalar uma Comissão da Verdade também no Brasil, a exemplo do que já foi feito em países como Chile ou Argentina, que experimentaram processos ditatoriais análogos ao que este país viveu , mas, também, entende-se a crença de muitos no sentido de que, apesar das queixas quanto às condições que a Comissão terá para apurar fatos, é uma vitória que ela ao menos tenha sido constituída.
A Comissão da Verdade pretende sepultar para sempre barbaridades como esse texto mitômano que tive o desprazer de reproduzir, barbaridades feitas sob medida para livrarem do opróbrio eterno os esbirros da ditadura que, com sua impunidade e mentiras, continuam conspurcando e torturando a nação até hoje.
Essas tentativas incessantes de esconder a verdade que continuam mobilizando os que praticaram os crimes que a Comissão da Verdade pretende apurar permitem refletir que a ditadura que emanou do Golpe de 1964 não deve ser inscrita na história apenas como selvagem, mas como uma ditadura envergonhada dos crimes que cometeu.