Victoria 19 X 0 Síndrome de Rett
Seis de outubro de 1998, fim da tarde. A Gabi (12 anos) chora de preocupação com a mãe, que está no centro cirúrgico dando à luz minha quarta filha, Victoria.
Estou ao lado da Tina, mãe da Gabi, da Carla (16 anos) e do André (10 anos), mulher com quem estou casado há 35 anos.
Victoria nasceu linda e forte. Mais de 3 kg, mais de 50 centímetros. Choro forte. Dos meus quatro filhos (três meninas, um menino) foi a que nasceu mais bonita e saudável.
Até cerca de um ano após seu nascimento, não notei nada. Dali em diante, porém, pai de quatro filhos, começo a perceber que ela não se desenvolvia como os outros três.
Ela não me olhava diretamente por mais do que um minuto. Seu olhar se dispersava e se perdia no infinito. Não reagia aos estímulos que os bebês, verdadeiros aspiradores de informação, reagem.
Fisicamente, não se equilibrava e nem sequer fazia menção de se locomover arrastando-se, a princípio, como todo bebê. Por volta de um ano e dois meses, nunca havia engatinhado…
Decidi conversar com a minha esposa, mas tive medo da reação dela. Parecia não notar nada – ou não querer notar. Meus outros filhos, idem.
Achei que seria mais profícuo reunir a família para comunicar minhas suspeitas de que algo estava terrivelmente errado. Esperei que estivéssemos todos reunidos em casa, após o jantar, e confessei meus temores.
A Gabi, mais uma vez, como sempre ante a menor contrariedade, verteu lágrimas enquanto implorava para que eu parasse de falar. A mãe dela e a nossa filha mais velha, Carla, irritaram-se comigo. O caçula, André, já pré-adolescente, como sempre ficou quietinho em um canto, só olhando – semblante triste.
Calei-me por um par de meses até que percebi que a família estava chegando à conclusão de que deveríamos procurar ajuda.
O doutor Ivã tornou-se pediatra da primogênita Carla antes de ela atingir os 4 anos (hoje ela tem 35, de Gabriela (hoje com 31) e do André (hoje com 29). Agora, passara a atender o sexto membro da nossa crescente família: Victoria, então com um 1 ano e seis meses.
Estávamos em 2000.
O pediatra concordou que havia um atraso considerável no desenvolvimento de Victoria, apesar de ela ser linda e forte, aparentemente.
Gastei o que não tinha. Achei que dinheiro resolveria o problema. Levei-a ao hospital Albert Einstein, zona Sul de São Paulo, o mais conceituado da cidade e talvez do país. Lá, empurraram-nos médicos e exames caríssimos, mas sempre diziam que não passava de “um atraso”.
Recomendaram fisioterapia e hidroterapia para fortalecer os músculos impotentes de Victoria, mas nada de diagnosticarem porque, além de não tomar iniciativa alguma de se interessar por nada ou de se locomover, não emitia som algum além de gritos sem significado e imotivados e de levar as mãozinhas à boca. Além disso, tinha violentas crises de choro que sumiam tão inesperadamente quanto surgiam.
Enquanto isso, o hospital me consumia recursos preciosos. Não sabia mais de onde tirar dinheiro, sempre achando que esse objeto de desejo e loucura de quase toda humanidade compra alguma coisa que valha a pena de verdade nesta vida, como saúde quando falta mesmo.
Passamos por incontáveis neuropediatras e todos falavam em “atraso”, apenas isso. O que era impossível…
Não havia progressos. Não importa quanto dinheiro fosse gasto, quantas sessões de fisioterapia, nada mudava o fato de que Victoria parecia não saber usar nenhuma das faculdades de que dispunha, como voz ou membros perfeitos.
Enfiar as mãozinhas na boca até que ficassem em carne viva e as crises de choro eram comportamentos que aumentavam de frequência a cada segundo, a cada hora, a cada dia, a cada semana.
Até que encontramos um médico que nos disse a verdade – até hoje acredito que os outros não tiveram coragem de me dar a notícia.
Chegamos ao consultório do neuropediatra oriental logo após o almoço. O dia amanhecera claro, mas o tempo começava a se fechar…
Não demorou mais do que uns 10 minutos de consulta para ele nos dizer assim, na lata, que Victoria tinha Síndrome de Rett e que provavelmente nunca falaria, nunca se locomoveria com as pernas ou de qualquer forma não por falta de mobilidade, mas porque seu cérebro não sabia usar seu corpo, o que incluía a voz e a própria boca para mastigar comida.
Ela nunca iria para a escola, nunca me deixaria preocupado por chegar tarde, nunca arranjaria um namorado que eu odiaria (como as irmãs), nunca deixaria de ser um bebê de seis meses de idade.
Entretanto, ela tinha saúde. Apenas continuava no estágio inicial de desenvolvimento motor e neurológio de um bebê de poucos meses de vida.
Paralelamente, a subsistência da família entrou foi drasticamente prejudicada por um prejuízo terrível que tive nos negócios. Exportava produtos brasileiros para a América Latina e clientes argentinos me impuseram um calote enorme devido à crise cambial que o país sofreu em 2001.
Perdi quase tudo.
Enquanto isso, a doença de Victoria tornava-se cada vez mais desesperadora.
Com o tempo, fui me reerguendo. A empresa foi encostada, por falta de capital de giro. Criei um escritório de representação e comecei a viajar pela América Latina e pela África para fechar contratos de exportação com indústrias brasileiras.
Chegamos a 2009. É por volta do décimo ano de vida que a doença muda de patamar. A síndrome de Rett começa a crescer. Victoria começa a adoecer.
Estava emagrecendo muito. Engasgava muito para comer. Até que contraiu uma forte pneumonia. No hospital, descobrimos que a doença havia quase que eliminado sua capacidade de deglutição, de modo que água, comida e até saliva em parte iam para os pulmões, gerando pneumonias sucessivas.
Ela ficou três meses na Unidade de Terapia Intensiva. Boa parte do tempo desacordada. Febres terríveis, não passavam…
Até que os médicos nos comunicaram que só interrompendo a alimentação por via oral ela sobreviveria. E, ainda assim, ela não estaria a salvo porque a boca saliva e essa saliva iria parar nos pulmões, causando novas pneumonias.
Para quem não sabe, pneumonias são o que mais mata a maioria das pessoas com paralisia cerebral.
Para interromper a alimentação via oral (o que inclui a ingestão de líquidos), Victoria sofreu uma gastrostomia (colocação de uma válvula no abdome por onde receberia alimentação líquida, pastosa).
Para não salivar, teve suas glândulas salivares retiradas e foram feitas aplicações de botox dentro da cavidade bucal, para secá-la.
Porém, são muitas glândulas salivares. Seria impossível acabar com a salivação da menina. E uma gota que fosse para os pulmões geraria pneumonia, com febres terríveis…
A internação parecia não terminar. Estávamos no segundo dos três meses quando um dos médicos, o neuropediatra do hospital, aplicou-nos um choque do qual jamais esqueceríamos.
Eu estava fora do país. Cheguei a São Paulo e fui direto do aeroporto para o hospital. Lá, encontrei minha mulher sentada nos jardins do hospital. Quando me viu, esboçou um sorriso… Mas estava claro que havia chorado.
Quando me viu, desabou. Atirou-se em meus braços aos prantos. Tina não é mulher de fazer cenas; algo terrível havia ocorrido.
O neuropediatra entrara no quarto da UTI no fim da noite anterior e teria dito que a família precisaria cair na real. Seria impossível impedir que Victoria broncoaspirasse sua própria saliva e uma das pneumonias ceifaria sua vida no período de mais dois ou três anos, no máximo.
Victoria tinha onze anos, quando lhe deram esse diagnóstico.
Nos quatro anos seguintes, ela passaria mais tempo internada do que em casa. Até que, em 2013, começou a reagir. As intensivas sessões de fonoaudiologia a ensinaram a controlar melhor a salivação e as reiteradas aplicações de botox na cavidade bucal conseguiram tornar cada vez mais raras as pneumonias.
Claro que a cada 3 ou 4 meses ela contraía pneumonia, mas todas foram vencidas. Algumas vezes, sua pressão caía tanto e a febre subia tanto que achávamos que Victoria não resistiria. Neste ano mesmo, aconteceu várias vezes.
Mas desde que previram que Victoria não duraria mais do que dois ou três anos passou-se quase uma década. E está linda, forte e contente por estar viva.
Victoria é uma mocinha feliz. Neste dia 6 de outubro de 2017 ela completa DEZENOVE ANOS. Os médicos dizem que os cuidados extremos e as doses gigantescas de amor ministradas pela família e, sobretudo, pela mãe são o que mantém a garota viva.
Há problemas. A doença encerra escoliose. A coluna vertebral vai assumindo o formato de um S e criando aquela corcundinha na pessoa.
Até cerca de uns 50 graus de torção, é possível conviver com o problema. Acima disso, há que operar.
A operação é terrível. Implica em abrir as costas da pessoa de fora a fora e colocar uma prótese para endireitar a coluna.
A situação de Victoria está próxima a esse desfecho. Os médicos não garantem que ela resista. Porém, os médicos disseram muita coisa sobre minha filha que jamais se concretizou.
Preferimos acreditar na vida e no poder miraculoso do amor. E só quem acha que estou me enganando é quem não viu como Victoria vem derrotando a doença contra todos os prognósticos.
No Jogo da Vida, neste 6 de outubro de 2017 Victoria está vencendo por 19 a zero. Belo placar para essa jovem e delicada Valquíria
Viva a Vida! Viva o amor! Viva Victoria!