Folha entrevista Lula para depois espicaçá-lo

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O ex-presidente Lula certamente sabia do risco que corria ao aceitar conceder entrevista à Folha de São Paulo, jornal que vive se equilibrando entre o reacionarismo e um partidarismo escrachado, de um lado, e um progressismo e um “isentismo” relutantes, de outro.

Se, ainda assim, o ex-presidente decidiu conceder a entrevista à sempre sagaz Mônica Bergamo é porque viu a chance de contar a sua versão dos fatos a um público prisioneiro das versões da mídia antipetista e que pouco – ou nenhum – esforço faz para conhecer o outro lado da moeda.

Ainda assim, nunca será demais perguntar se vale mesmo a pena falar a um público que não quer ouvir e que, como se não bastasse, ainda recebe um anestésico cerebral através das piruetas retóricas que só essa imprensa de extração autoritária e arcaica sabe produzir de forma tão asquerosa.

Todos sabiam que a entrevista publicada na última quinta-feira (1º de março) precederia um editorial “da Casa” espicaçando o entrevistado e tripudiando sobre os tormentos que lhe são impostos pelo Estado brasileiro sem o concurso visível de nem um mero simulacro de justiça em tal tratamento.

Nem ao abordar os pontos que tornam ainda mais injusto seu deboche da postura altaneira de Lula o jornal demonstra perceber o que dificilmente não perceberia, já que ninguém pode acusar a direção desse veículo de falta de ilustração para interpretar fatos cristalinos.

Sob o título debochado “piruetas de Lula”, o editorial dá um salto mortal logo de saída ao dizer “inverossímeis” as teorias do ex-presidente sobre as causas de tudo que lhe está acontecendo. A pirueta da Folha consiste em ver falta de lógica sem oferecer explicação melhor para um fato que até admite que existe, mas que trata de não tentar explicar porque, se o fizesse, ficaria claro que falta lógica às acusações que faz ao ex-presidente.

O jornal, a certa altura, reconhece o inegável: que Lula instituiu mecanismos inéditos para combater a corrupção. Relata que Lula “diz orgulhar-se de ter instituído, no governo, mecanismos eficientes de combate à corrupção” e concluiu que o ex-presidente “tem boa dose de razão neste ponto”.

Boa dose de razão? Como, assim?

Lula tem 100% de razão ao dizer que fortaleceu a Polícia Federal dando-lhe independência e recursos que nunca nenhum outro presidente deu.

Lula tem 100% de razão ao dizer que fortaleceu o Ministério Público Federal com fartura de recursos e lhe dando, pela primeira vez na história, o direito de escolher o chefe da instituição, que, aliás, acumula o poder de investigar, denunciar e processar o presidente da República.

Ou a Folha esqueceu do engavetador-geral da República de FHC ou da procuradora-geral da República que gosta de visitar às altas horas da noite, em casa, um presidente que tem a obrigação de fiscalizar e que, como se não bastasse, responde a processos por vários crimes comuns?

Lula também tem 100% de razão ao dizer que nomeou juízes do Supremo sem usar critério como o de um FHC ao nomear um Gilmar Mendes ou o de um Michel Temer ao nomear um Alexandre de Moraes.

Ou seja: o critério do próprio interesse futuro.

O editorial ainda prossegue nos malabarismos ao citar um fato que só existe em uma mente delirante ou muito mal-intencionada. Diz que Lula só acha que “merecem elogio as instituições” de controle “quando prendem outros que não os petistas”…

Daria para a Folha explicar quando é que “as instituições” prendem “outros que não petistas” ou que foram aliados do PT e de Lula e que, portanto, tornam-se “petistas” por osmose, por proximidade?

De resto, a Lava Jato não “prendeu” ou sequer chegou perto disso em relação a políticos que não estiveram no mesmo campo de Lula, como os tucanos, mas que, provavelmente, roubaram muito mais e não mereceram uma só cobrança da Folha e do resto da imprensa antipetista às autoridades para que endureçam com eles.

Ou a Folha cobrou para José Serra o mesmo tratamento dado a Jaques Wagner? Afinal, Serra e Wagner são dois ex-governadores acusados de corrupção por delatores que trabalharam nas empreiteiras acusadas pela Lava Jato. Mas ninguém vê uma só ação contra o tucano, enquanto que o petista foi alvo de um espetáculo pirotécnico.

A Folha diz que Lula “abre uma exceção” às críticas que faz a Sergio Moro ao dizer que “seu ex-ministro Antonio Palocci Filho (…) demonstrou gostar de dinheiro” e que, “aqui, o juiz Moro certamente não terá então agido por influência do governo americano”.

É óbvio que Lula nunca disse que TODAS as ações da Lava Jato são infundadas ou que não há culpados em meio aos acusados e até presos. Essa é uma distorção asquerosa das palavras do ex-presidente.

Mas talvez a pior parte tenha sido quando a Folha ousou, cometeu a suprema ousadia, o mais revoltante deboche ao ironizar a premissa de que um golpe tirou Dilma Rousseff do poder.

É possível encontrar miríades de juristas renomados do Brasil e do exterior que atestam que nunca houve uma justificativa CONSTITUCIONAL para derrubarem Dilma Rousseff. Ela não cometeu crime de responsabilidade e o próprio jornal admitiu que ela foi derrubada porque perdeu apoio político, como se o Brasil fosse parlamentarista.

Só que o Brasil NÃO É parlamentarista.

As piruetas da Folha, porém, não passarão despercebidas entre aqueles leitores que tiverem cérebro e um mínimo senso de Justiça. Aliás, ao tentar interpretar de forma maliciosa as palavras ditas por Lula a Mônica Bergamo, o jornal passa recibo de que a entrevista de Lula foi boa.

Talvez, boa demais…

*

Leia, abaixo, o editorial em tela:

 

FOLHA DE SÃO PAULO

2 de março de 2018

Editorial

Piruetas de Lula

Diante de um momento dificílimo em sua carreira, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez jus a sua reconhecida imagem de político habilíssimo em entrevista concedida a esta Folha.

Como qualquer envolvido em sérias evidências de corrupção, proclama-se inocente, diz confiar nas instituições e ser vítima da perseguição de seus adversários.

Há algo em Lula que se afasta, entretanto, da rigidez persistente ou do tom melodramático com que outros investigados e condenados procuram negar os fatos.

Nota-se no ex-presidente um à vontade, um humor, um toque de intimidade na interlocução que, sem dúvida, poucos na situação seriam capazes de manifestar.

Ele pode beneficiar-se, ademais, do calor indiscutível que lhe transmite a persistente popularidade.

Deriva daí, sem dúvida, o paradoxo que configura todo seu diálogo com a jornalista Mônica Bergamo. Lula estaria morto politicamente, como se diz, mas ainda assim vivíssimo; parece fora da realidade, mas ao mesmo tempo sente a realidade a seu favor. Resvala pelas mais patentes contradições e cobre-as de irônica coerência.

É assim que, de um lado, investe nas delirantes versões de que a atuação do juiz Sergio Moro segue instruções de Washington, motivadas pelas riquezas do petróleo; ou de complôs da Polícia Federal, do Ministério Público e da imprensa.

De outro, refuta a ideia de que seria contrário à Operação Lava Jato; diz orgulhar-se de ter instituído, no governo, mecanismos eficientes de combate à corrupção —e tem boa dose de razão neste ponto.

Mas, se merecem elogio as instituições, é quando prendem outros que não os petistas. Ressalte-se, entretanto, que Lula abre uma exceção a seu ex-ministro Antonio Palocci Filho, “que demonstrou gostar de dinheiro”.

Aqui, o juiz Moro certamente não terá então agido por influência do governo americano.

O custo de tamanha ginástica implica atribuir as revelações sobre a conduta do presidente Michel Temer (MDB) a uma tentativa de golpe, como a que em sua visão atingiu Dilma Rousseff.

Temer seria mais uma vítima das conspirações, do mesmo modo que os protestos de junho de 2013 consistiram, quem sabe, em outra estratégia da CIA.

Sobre os favores que recebeu de empreiteiras, Lula recusa-se a comentar seu aspecto ético; prefere, aqui, refugiar-se nas formalidades do campo jurídico.

Nesse vaivém vertiginoso ele prossegue, esperando que a realidade política predomine sobre a realidade dos fatos —e que a esperteza triunfe sobre a lei. É popular, mas ilude cada vez menos.

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