Irracionalidade nas eleições pode nos levar ao abismo
Nesta eleição presidencial, em que se desenha de forma praticamente irreversível uma nova bipolaridade – entre a extrema direita encarnada por Jair Bolsonaro e a esquerda representada pelo PT –, há um aspecto do debate político que sobressai. Trata-se da equiparação entre os dois polos, como se eles fossem realmente similares, sintetizada na ideia de que se trata de uma disputa “entre dois extremos”.
A ideia dos “dois extremos” vem sendo repetida por diversos atores: adversários das duas candidaturas favoritas, jornalistas, acadêmicos e eleitores comuns. Essa ideia, contudo, faz pouco sentido diante das evidências factuais.
Se considerarmos somente os aspectos negativos dos 13 anos do PT no governo, podemos apontar como principais os escândalos de corrupção, a cumplicidade com regimes autoritários de esquerda (em especial Venezuela e Cuba) e a política econômica equivocada nos planos macro e micro (principalmente nos governos Dilma Rousseff). Nenhum desses problemas, contudo, produziu um governo extremista ou autoritário. Vejamos as evidências.
Durante esses 13 anos, as operações da Polícia Federal se multiplicaram e atingiram inclusive o próprio PT – como no caso da Operação Lava Jato. A polícia subordinada ao Ministério da Justiça, portanto, não foi usada pelo governo contra seus adversários políticos (como seria de se esperar de um governo autoritário), mas atuou até mesmo contra ele.
Algo similar se deu nas nomeações para os tribunais superiores – em especial o Supremo – e a Procuradoria Geral da República. Ministros nomeados para a corte suprema pelos governos petistas decidiram em seu desfavor. Os procuradores gerais da República apontados por Lula e Dilma, sempre acatando a lista tríplice elaborada pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), denunciaram membros do governo e do partido. Governos autoritários ou extremistas tentam controlar as instituições judiciais, o que não ocorreu aqui.
No caso da indicação do Procurador Geral da República, tanto Fernando Henrique Cardoso antes, como Michel Temer depois, optaram por não indicar os mais votados pelos procuradores da República. Não há nada de errado nisso, seja porque a eleição da ANPR não é prevista em lei como requisito para a indicação, seja porque listas tríplices servem para serem usadas – ou seja, para que se escolha qualquer um dos três. De qualquer forma, foram os governos petistas os que pura e simplesmente acataram a escolha principal dos membros do Ministério Público.
No que diz respeito à imprensa, não consta qualquer tentativa de censura ou de regulação da mídia com vistas a conteúdo. Esse foi um assunto muito discutido ao longo de todos esses anos e alguns setores da esquerda falavam em “regulação social da mídia”. Essa, contudo, não foi uma proposta encampada ou sequer encaminhada por qualquer um dos governos petistas. Se compararmos com a Venezuela, a distância é abissal, pois lá o chavismo negou a renovação de concessões a emissoras críticas do governo e intimidou os jornais oposicionistas. Por aqui, o máximo que o governo fez foi direcionar verbas publicitárias para veículos da imprensa alternativa, sem, contudo, sufocar a grande mídia que lhe era crítica – algo que o candidato Jair Bolsonaro já ameaçou fazer, em especial com a Rede Globo.
A incapacidade de criticar os regimes autoritários da esquerda na América Latina tem sido um ponto frequentemente apontado como sinal de autoritarismo do PT e da esquerda de um modo geral. É, inegavelmente, uma questão relevante. Entretanto, essa relação fetichista da esquerda brasileira com as ditaduras de esquerda não implicou a reprodução por aqui daqueles modelos, ou sequer sua defesa como referência para a adoção de práticas similares. Esse fetiche, aliás, não é peculiar à esquerda brasileira e se verifica noutros lugares, como no Uruguai, na Espanha, em Portugal, por exemplo. Em nenhum deles a esquerda produziu governos autoritários – pelo contrário.
O problema aí é de duas ordens. A primeira, simbólica: a esquerda brasileira sofisma para tentar justificar ou ocultar coisas que ela mesma não pratica. A segunda, prática: a recusa em condenar ditaduras afeta sua política externa, que adota para com tais regimes uma postura benevolente. Por outro lado – poder-se-ia apontar –, ao não condenar tais regimes, um governo pode ocupar um espaço de interlocução e mediação que, de outra forma, estaria fechado. E, além disso, todos os países do mundo mantêm relações com regimes autoritários com os quais estabelecem negócios que lhe são interessantes, negligenciando ou ignorando o problema da falta de liberdade. Não fosse assim, não manteríamos as relações que mantemos com a China, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes etc.
Aponta-se o problema da corrupção, que vilipendiaria as instituições democráticas e seria, assim, uma ameaça autoritária. A corrupção é mesmo algo nocivo à democracia, mas não equivale a extremismo ou autoritarismo. Como essa não é exclusividade do PT, se considerássemos que corrupção produz extremismo, teríamos que considerar que são extremistas todos os partidos afetados por corrupção, como o MDB, o PR, o PTB (e outros do chamado “centrão”), além do PSDB.
Quanto a isso, aliás, é preciso proceder a uma inversão da lógica: é muito mais difícil combater a corrupção num governo autoritário, em que não há transparência, nem autonomia dos órgãos de controle, da polícia, do Judiciário e do Ministério Público. Veja-se o que ocorreu na Turquia, em que o presidente Recep Tayyip Erdogan, após um suposto golpe de Estado, passou a perseguir todos aqueles que haviam lhe investigado por corrupção e todos seus opositores.
Por fim, os governos petistas não mudaram a Constituição para reforçar sua situação de poder. Lula não tentou um terceiro mandato, não houve limitação dos poderes do Judiciário ou do Ministério Público. Pelo contrário, foi reforçada a Controladoria Geral da União, assim como a Polícia Federal. Mas por que motivo, apesar dessas evidências acerca do PT e de outras, em sentido contrário, contra Bolsonaro, ainda há quem insista em dizer que se trata de “dois extremos”? As razões são ao menos três e não se excluem por completo.
Em parte, por interesse político. Como é implausível dizer que Bolsonaro não é um extremista, afirma-se que o outro lado também é. Por essa lógica, um não poderia ser alternativa ao outro, já que eles se equivaleriam, sendo necessário buscar uma terceira opção (que hoje, pelo que mostram as pesquisas, já não é viável).
Em segundo lugar, por desonestidade intelectual. Muitos dos que tentam equiparar PT e o bolsonarismo sabem que tal equivalência não existe, mas a estabelecem. As motivações podem variar e vão desde a resistência a reconhecer que se carregaram muito as tintas nas críticas ao PT, até a inconfessa preferência pela alternativa extremista, por essa ser de direita, apesar de extremista. Noutras palavras, são os direitistas que consideram o extremismo de direita preferível à moderação de esquerda.
Em terceiro lugar, há o irracionalismo encarnado no ódio ao PT, paulatinamente construído. Desde ao menos o primeiro governo Lula, sobretudo após o escândalo do mensalão, ganhou corpo uma crônica política de crítica ao PT que operava por duas vias complementares. Por uma, equiparava-se o partido a uma quadrilha e, consequentemente, seus membros, indistintamente, a bandidos. Nada encarnou melhor essa desqualificação absoluta do que o termo “petralha”. Na mesma linha ia a denominação de esquerdistas como “esquerdopatas”, como se adotar tal posicionamento político fosse uma forma de doença mental.
Não só esses termos, mas o tipo de crítica que eles sintetizavam, uma crítica absoluta, repetida ad nauseam, foi criando a “verdade” inconteste de que o PT era a encarnação dos principais males que nos atingiam, desde a corrupção até o autoritarismo de esquerda, a “venezualização”, o “comunismo”, o “bolchevismo”. A corrupção, que de fato atingiu o PT, tornava-se nesse discurso quase que sua exclusividade, convertendo o partido no campeão absoluto da corrupção, insuperável por qualquer outro, em qualquer tempo e lugar. Ademais, o esquerdismo do PT era magnificado para equipará-lo ao Khmer Vermelho no Camboja, ao chavismo ou ao castrismo.
Esse tipo de mistificação, em boa parte oriunda da repetição por diversos publicistas, comentaristas e formadores de opinião das mesmas “verdades”, insistentemente, ao longo de mais de uma década, foi reforçado pelos erros reais do próprio PT – assim como de sua incapacidade de produzir uma autocrítica. Criou-se um espantalho e instilou-se em segmentos importantes da sociedade brasileira uma percepção exagerada sobre os defeitos verdadeiros do partido. Produziu-se em relação a uma organização política uma narrativa intolerante e mistificadora que disseminou entre cidadãos comuns uma tal ojeriza a ele que qualquer evidência em contrário é simplesmente rechaçada – ao mesmo tempo que evidências desfavoráveis a seus detratores são minimizadas, numa espécie de terraplanismo político.
Um lado curioso é que muitos desses instiladores do ódio político à esquerda e a seu principal partido se veem, hoje, numa situação constrangedora. Tendo recuado em algumas posições, demonstrando sobretudo preocupação com o Estado de direito e as liberdades, são atacados violentamente por uma horda de antigos seguidores, inconformados com sua guinada rumo à moderação, vista como traição ou apostasia. Criaram corvos que agora aparecem para lhes bicar os olhos.
O PT cometeu muitos erros dos quais ainda não se retratou. Porém, entre esses erros não está o extremismo. O ódio de que é alvo resulta de algo distinto de seus erros. Ele provém de uma estigmatização similar àquela que se produz contra grupos minoritários apontados como responsáveis por todos os males a afligir uma sociedade. E apesar de neste caso se tratar não de uma minoria, mas de um partido eleito por uma maioria eleitoral, a estigmatização ocorreu.
Repete-se o tempo todo que um determinado grupo é o culpado por tudo, que conspira, que representa uma ameaça, que se compõe de criminosos ou ratos, que deve ser extirpado, que nenhum de seus membros é passível de confiança, que os erros de uns são os erros de todos, que a solidariedade que prestam a seus pares é odiosa e sinal de que todos merecem castigo e repúdio. A história já nos ensinou até onde isso leva.
Esse discurso atroz dissemina ódio, irrealismo e serve para justificar violências. Serve também para nublar a percepção e equiparar o que não é equiparável. Sua base é irracionalista e o irracionalismo é o elemento central do fascismo, pois repudia de antemão tudo aquilo que poderia demonstrar o contrário; só o que confirma a crença é considerado. Eis o ponto a que chegamos.
Da Nexo.