Maconha terapêutica ajuda a inibir o preconceito

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Nos últimos três anos, o uso de substâncias derivadas da maconha para o tratamento de dores crônicas cresceu no Brasil após a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) liberar a importação de produtos extraídos da Cannabis. Muitos médicos, porém, ainda são resistentes a indicá-los aos pacientes.

“Achava que essa história de usar a Cannabis como medicamento era uma forma de oficializar uma prática ilegal. Mas encontrei bons artigos sobre o tema e me convenci de que poderia ser interessante”, diz o ortopedista Ricardo Ferreira, especialista em coluna e dor.

Ele passou a estudar os efeitos terapêuticos da maconha em 2012, quando buscava aliviar o sofrimento de pacientes que, mesmo submetidos a cirurgias e a todas as medicações disponíveis no mercado, continuavam a sentir dor.

Mas só em 2015, quando a importação de produtos à base de canabidiol (CBD) foi liberada, o médico prescreveu um extrato derivado da planta.

No início, muitos pacientes desistiram do tratamento em razão da burocracia e do custo. Hoje, o acesso está um pouco mais fácil, e o preço reduziu —embora ainda seja alto.

Para importar o óleo de CBD, é preciso preencher um formulário no site da Anvisa, anexando receita, laudo médico e declaração de responsabilidade do paciente. O órgão demora em média 25 dias para conceder a autorização.

O maior entrave está em conseguir o custeio da terapia pelo SUS, segundo Franklin Vargas, presidente da Anuc (Associação Nacional dos Usuários de Canabidiol), que dá orientação e auxílio jurídico a pacientes. “O processo judicial pode levar vários meses”, diz.

Para a dona de casa Linguinalva Santos, 70, a espera durou seis meses. Ela ganhou o processo, que corria na Justiça desde maio, e terá seu tratamento bancado pelo governo.

Diagnosticada há quatro anos com fibromialgia, que provoca dores fortes pelo corpo, ela chegou a tomar altas doses de analgésicos e opioides, mas não sentia melhora.

Com indicação médica, começou o tratamento com o óleo de canabidiol em março, custeado pelo marido. Desde então, as despesas ultrapassaram R$ 9.000. “Foi a única coisa que funcionou. Antes, só ficava em casa. Hoje, já saio e até vou ver meus filhos em São Paulo”, diz Linguinalva, que mora em Praia Grande, no litoral do estado.

A dona de casa toma por dia três colheres do óleo, que tem textura pastosa. Segundo ela, o número de crises diminuiu.

O mesmo relata o publicitário Caio Simão, 27, que também faz uso do óleo de CBD para fibromialgia. A diferença é que ele toma, desde julho, uma dosagem menor do que a receitada, em razão do custo.

Hoje, ele gasta R$ 1.300 por mês, mas deveria desembolsar R$ 6.000 para ter acesso à terapia adequada. Já falou com um advogado para tentar o financiamento pelo SUS.

“Minhas dores melhoraram 80%. Para quem tem dor todo dia, é um resultado inacreditável”, diz. Durante oito anos, ele tentou tratamentos com exercício físico, analgésicos, antidepressivos, relaxantes musculares e opioides.

Quando recebeu a indicação para o uso do CBD, seus pais ficaram assustados, por causa do estigma associado aos produtos derivados da maconha. “Expliquei que esse era o último recurso”, diz.

O uso de CBD nunca deve ser a primeira opção no tratamento de dores crônicas, segundo a anestesiologista Mariana Palladini, da SBED (Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor). Isso porque a maioria dos pacientes responde a terapias convencionais.

“Não deve haver banalização. O canabidiol ajuda a empregar uma dosagem menor de outros medicamentos, diminuindo efeitos adversos.”

Mas a substância derivada da maconha que possui maior efeito analgésico não é o CBD e sim o THC (tetra-hidrocanabinol), segundo Renato Filev, biomédico e pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O THC é o responsável pelo efeito psicoativo da maconha —é o que “dá o barato”. Já o CBD não produz alterações de comportamento.

Após determinação judicial, a Anvisa permitiu a prescrição e importação de produtos com THC em março de 2016. Em janeiro de 2017, o órgão aprovou o registro do primeiro remédio à base de maconha no país, o Mevatyl (Sativex no exterior), composto por concentrações semelhantes de THC e CBD. Com tarja preta, custa cerca de R$ 2.800.

“O que eu percebo na minha prática médica é que as duas substâncias têm efeito terapêutico. O THC é mais eficaz, mas não é prático que a pessoa fique chapada”, afirma Ricardo Ferreira, presidente da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis).

Segundo o médico, metade dos seus pacientes tem resultados satisfatórios com extratos ricos em CBD. Só aqueles que não conseguem alívio da dor devem experimentar o uso do THC, diz ele.

Em razão do preço elevado do Mevatyl e da falta de fornecedores estrangeiros que importem óleos ricos em THC, há duas alternativas para quem precisa fazer uso do produto: conseguir permissão judicial para plantar Cannabis ou procurar a Abrace Esperança, associação sem fins lucrativos de João Pessoa (PB) que tem autorização para cultivar e fornecer óleos a membros.

Para se associar à entidade, é preciso apresentar receita e laudo médico e pagar a anuidade de R$ 350. Os óleos custam, em média, R$ 0,50/ml.

“Enfrentamos preconceito sobretudo da classe médica”, afirma Cassiano Teixeira, diretor-presidente da Abrace.

Para evitar o problema e aumentar a aceitação das drogas, as empresas estrangeiras que importam óleos de CBD frisam que sua produção não é feita da maconha, e sim do cânhamo, variedade da Cannabis com baixo teor de THC e sem efeito euforizante.

“Querem desvencilhar [uma planta da outra]. Mas óleo de cânhamo é óleo de maconha”, diz Renato Filev, da Unifesp. “Precisamos acabar com esse estigma. É uma planta usada para fins terapêuticos há 5.000 anos”, afirma o pesquisador.

Da FSP