O poder emana do povo, mas o brasileiro ainda não sabe disso

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Por Nereu H. Cavalcante*

Quantas vezes você, diante do descalabro das instituições oficiais do Brasil, provocado pelos abusos das autoridades que desrespeitam as leis e prevaricam, ouviu alguém dizer (ou até mesmo disse), em tom derrotista: “quem sou eu para fazer alguma coisa, se quem pode é quem está destruindo tudo?”

Este pensamento advém de um desconhecimento de quem é o verdadeiro detentor do poder. O poder, de fato, pertence ao povo ou provisoriamente a quem o povo revestiu com este poder para executar uma medida específica e somente pelo prazo estipulado.

Daí você indagaria: “dizer isso é bonito e fácil, porém, a realidade é bem diferente!” Outra indagação seria: “por que os militares dos países desenvolvidos da Europa, além dos americanos, se comportam dentro dos limites de suas funções, com sentimentos patrióticos e respeito cívico, enquanto os daqui e de outros países menos desenvolvidos ficam se imiscuindo em assuntos do governo e ameaçando golpes de Estado o tempo todo?”

Então vamos aos fatos.

Primeiramente, os militares dos países desenvolvidos, como seres humanos, em nada são diferentes dos militares daqui nem dos outros cidadãos dos seus países ou de qualquer país, e eles veem assim e se veem assim simplesmente por fator histórico, quero dizer, pela memória histórica coletiva comum a todos os cidadãos daqueles países.

 

O que se aprende fica: a memória dos povos

O que significa “memória histórica coletiva”? É a memória presente no inconsciente coletivo. Não é a mera memorização da história, mas a sensação de tê-la vivido e de a estar vivendo em continuação, moldando em cada um a sua natureza animal.

Por exemplo: um garoto que, na escola, se sente mais forte que os demais e, por isso, tenta se impor. Imagine, porém, se um garoto menor domina uma luta marcial e enfrenta o garotão forte, impondo-lhe uma derrota humilhante. Digamos que o garotinho menor tenha os olhos amendoados. Depois do acontecimento, o garotão forte, sempre que vir um garoto com olhos amendoados, vai tratá-lo com respeito, enquanto o garoto menor vai se encher de coragem e autoconfiança. Assim é com o povo dos países desenvolvidos e o comportamento de seus militares, de tal sorte que aquele respeito que começou por medo passa a se tornar cultural.

Basta ver a história dos países que muitos admiram, os quais impressionam pela civilidade, pela responsabilidade e pelo respeito de todos para com todos.  É importante dizer: não foi sempre assim. De tempos antigos até os mais recentes, toda vez que um poder se excedeu nas suas prerrogativas o povo agiu com extrema violência, derrubando como um vendaval ou um poderoso furacão todos os que se mantiveram fiéis ao governo ou ao poder tirânico.

Assim foi com Tarquínio, o Soberbo, rei de Roma que, por ter ultrapassado os limites da tolerância do povo, foi destituído do poder. Após sua queda, instalou-se a república em Roma no lugar da monarquia.

Assim foi com a conquista da Magna Carta, que inspirou todas as Constituições dos países, no ano de 1215, em Runnymed, próximo a Windsor, na Inglaterra. Ali, digamos que foi um vendaval.

Também foi assim com a Revolução Francesa, ocorrida entre 1789 e 1799. Neste caso, um furacão.

Foram povos que derrubaram monarquias e regimes autoritários. Ou seja, a sensação de poder do povo está na memória coletiva, portanto, na cultura desses povos. Quando há a sensação de força e de poder emanado do povo, potenciais usurpadores e déspotas sentem medo e impotência. Então, nesses países, ser um cidadão comum é só o que se é permitido. Ninguém é livre para extrapolar. É que chamamos de democracia.

 

E como anda a memória coletiva do Brasil?

E por que esta consciência tão potente de poder não se manifesta no nosso povo? Porque não basta saber da história, é preciso fazer parte dela. No Brasil, por uma astuta habilidade dos que ocuparam o poder e por fatores peculiares do Brasil e da América Latina, ainda vivemos esse infortúnio histórico.

Podemos citar, como um desses fatores, o período de escravidão. O escravo, pela sua situação desumanizada, não podia desenvolver a consciência de povo, pois não lhe era permitido o convívio comunitário que pudesse amadurecer a consciência de povo único.

Movimentos revolucionários o Brasil teve muitos (e heroicos). Alguns com sucesso retumbante, mas que não puderam derrubaram o governo monarquista, pois o povo estava dividido. O regime iria cair, cedo ou tarde, mas é aí que entra a astúcia dos usurpadores do poder para, desesperadamente, tentar evitar esta queda. Aliás, dividir o povo e se antecipar a sua insurgência sempre foi uma arma dos poderosos para manter o povo à margem da história.

Movimentos independentistas brotaram em todo o território brasileiro. Na Bahia, por exemplo, as tropas brasileiras venceram as tropas portuguesas. Então, a Família Real concordou que o Brasil ficaria independente para acalmar tais movimentos (quero de dizer, fez de conta, pois continuávamos submetidos à mesma família). Enquanto isso, todos os países vizinhos já tinham governos republicanos.

Antes que o povo fizesse a revolução, fazendo o país cair nas mãos da massa de uma vez por todas, um velho marechal monarquista e amigo íntimo do imperador, forçado pela linha dura do exército, deu um golpe de Estado e proclamou a República do Brasil.

Trata-se de uma habilidade de nossas elites, que fez escola no Brasil. O exemplo mais recente desse comportamento de raposa foi a ditadura militar. Os militares deram um golpe de Estado, com autoria intelectual da CIA, agência do governo americano que promoveu golpes semelhantes em vários países do mundo.

 

Um pesadelo que durou 21 anos, em vez de cinco

No Brasil, era plano do Marechal Castelo Branco, segundo fontes extraoficiais, manter o país naquele estado de exceção apenas por cinco anos. Mas Castelo Branco, que não estava mais no governo nem no exército, mas que gozava de respeito dentro da corporação e até na sociedade, podendo influenciar decisivamente nos rumos do governo, morreu num acidente aéreo muito suspeito, para dizer o mínimo. Assim, sem a sua influência, o regime militar quis se perpetuar no governo.

A ditadura novamente, com astúcia, manteve o comando do poder central, mas misturou fragmentos de democracia, como eleições livres para prefeitos e para parlamentares, fazendo grande parte da sociedade não se sentir incomodada e até pensar que não vivia sob ditadura. Os militares ficaram ali enquanto jorrava dinheiro farto e fácil, fruto dos vultosos empréstimos que o Brasil contraia no exterior. Eram nacionalistas, mas péssimos administradores. A casa iria cair.

Com a dívida externa se avolumando ao ponto de se tornarem impagáveis até mesmo os juros, os militares, prevendo um levante que os varreria de vez do cenário político do país (e que certamente iria julgar e condenar militares por torturar e matar) resolveram sair de cena de maneira negociada para, em qualquer momento futuro oportuno, voltarem à política. Assim, iniciou-se a abertura política no governo do general Ernesto Geisel, concluída no governo do general João Batista Figueiredo.

Mais uma vez, a mudança não veio pelas mãos do povo. Essa péssima negociação de transição não deixou que a sociedade civil julgasse e condenasse os criminosos do regime, deixando-os afoitos para, agora, ocuparem gradativamente o poder.

 

Os déspotas sábios entram e saem de cena sem deixar o povo agir

O que acontece quando um déspota se recusa a abandonar o poder? Como já vimos, o povo o derruba violentamente. Por volta dos anos 1980, as ditaduras começaram a cair pelo mundo como frutas podres. Um acontecimento didático ocorreu no Irã, durante a revolução islâmica, ou seja, em meio ao “furacão” popular revolucionário.

O mandatário daquele país, um ditador bancado pelos Estados Unidos, Xá Reza Pahlevi, respondeu a um jornalista que o perguntara sobre sua possível derrubada do poder, ao que ele, com soberba, respondeu: “eu tenho a maior força militar do Oriente Médio e os meus militares me são fiéis. Eu estou seguro”. A estupidez do Xá Reza Pahlevi foi não considerar que contra ele e qualquer seguidor dele estava o povo.

O que se sucedeu depois disso foi seu séquito de generais e militares de alta patente, que antes posavam para as câmeras para mostrar coesão e lealdade, tendo seus corpos fotografados e filmados em urnas funerárias, como troféus dos revolucionários.

 

Epílogo de uma democracia em frangalhos

Aqui no Brasil ainda não tivemos uma grande revolta popular, pelos motivos já expostos. Mas todos os povos que um dia se insurgiram para, hoje, serem livres e respeitados por seus comandantes, também tiveram seu processo, seus caminhos. Não será diferente no Brasil.

O que estão fazendo com o maior líder político mundial do século 21, Luís Inácio Lula da Silva, é ignominioso. Na eventualidade de sua morte, devida aos suplícios que lhe têm sido impostos por delinquentes usurpadores dos poderes da república, esta gente inconsequente, inculta e estúpida pagará um preço alto, pois chegará o dia que as massas dirão “basta, acabou para vocês”.

*Nereu H. Cavalcante é filósofo e ex-sindicalista do Sincato dos Petroleiros.