Para destruir cultura indígena, missionários até aprendem a pilotar avião
Cursos de piloto de avião, antropologia e linguística, vivências em réplicas de aldeias e peças de teatro estão entre as estratégias adotadas por ONGs missionárias brasileiras e estrangeiras para atrair voluntários ao esforço de evangelizar indígenas na Amazônia.
Lideranças indígenas contrárias às iniciativas temem que elas venham a ganhar fôlego no governo de Jair Bolsonaro, após a indicação da pastora evangélica Damares Alves para o ministério encarregado pela política indigenista.
Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), diz que “com a indicação da ministra Damares, o novo governo sinaliza que está claramente articulado com missionários evangélicos numa estratégia declarada de integrar o indígena à sociedade – a mesma estratégia da ditadura militar.”
Segundo a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), entidade que reúne 78 organizações missionárias, há no mundo “dois mil povos sem o Evangelho, entre os quais 89 estão no Brasil”.
A associação tem um Departamento de Assuntos Indígenas, cuja missão é “atender demandas sociopolíticas oriundas das agências filiadas junto aos órgãos governamentais”, como obter autorizações para atuar em terras indígenas e influenciar congressistas em debates sobre o trabalho missionário em aldeias.
Uma das entidades filiadas é a Asas de Socorro, criada por missionários americanos em 1955 e que mantém em Anápolis (GO) uma escola para formar pilotos e mecânicos dedicados “à causa do evangelismo nas aldeias, comunidades ribeirinhas e povos tradicionais, habitantes em regiões isoladas ou em situação de risco na Amazônia”.
A formação completa dura quatro anos e custa cerca de R$ 1.500 ao mês, valor subsidiado pela organização, e garante ao aluno licenças de piloto comercial, voo por instrumentos e instrutor de voo.
Em cursos de piloto anunciados na internet, as mensalidades chegam a R$ 4.200/mês.
A Asas de Socorro tem bases em Roraima, Rondônia e no Amazonas. Um instrutor disse à BBC News Brasil que, após a conclusão do curso, espera-se que o voluntário passe a prover apoio logístico a missionários que já estejam em aldeias.
Os pilotos também podem fazer cursos para participar da evangelização direta dos grupos, além de atuar em emergências, resgatando missionários ou indígenas doentes. As operações são financiadas por doadores individuais e igrejas parceiras da Asas de Socorro.
Com sede nos EUA, a agência missionária Association of Baptists for World Evangelism (Associação Batista para o Evangelismo Global) também emprega aviadores missionários no Brasil.
Em seu site a organização conclama voluntários a servir no país, descrito como um local onde “religiões tradicionais e o espiritismo ainda abarcam parte da população”.
Muitas organizações filiadas à AMTB têm sede no exterior – caso da WEC (Worldwide Evangelisation for Christ), criada por um britânico em 1913 e que diz ter como meta “envolver-se com 33 novos povos” em 2018 em parceria com as igrejas brasileiras.
Algumas organizações se especializam no treinamento antropológico e linguístico dos missionários.
“Nunca houve uma época em que os missionários fossem tão bem preparados como agora”, diz à BBC News Brasil o presidente da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e vice-presidente da Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), Edward Luz.
Luz diz que mais de 1.700 missionários já foram formados pelo Instituto Bíblico Peniel, braço educacional da MNTB, fundada em 1953 e hoje presente em 50 etnias brasileiras. O curso dura quatro anos e meio e tem aulas de teologia, antropologia e linguística.
A formação busca preparar o aluno para iniciar o trabalho missionário do zero em qualquer etnia, falante de qualquer língua, em qualquer lugar do mundo. O missionário tem acesso a técnicas para aprender um idioma qualquer por conta própria, transliterá-lo para nosso alfabeto e traduzir a bíblia para a língua aprendida.
O objetivo da MNTB é estimular as comunidades a criar suas próprias igrejas evangélicas. Entre os povos que não falam português, os cultos são sempre celebrados na língua local.
Foi essa a estratégia que eles aplicaram, por exemplo, entre os Wari’ (também conhecidos como Pacaas Nova), grupo contatado pela MNTB em 1956, em Rondônia. “A igreja deles é totalmente Pacaa Nova. Eu nunca seria pastor numa aldeia indígena”, diz Luz.
Durante o curso de formação, os candidatos a missionários da MNTB assistem à peça teatral Clamor de Batum – que, segundo a organização, reproduz um episódio real ocorrido na Papua Nova Guiné, país na Oceania.
Na peça, um grupo de jovens missionários visita pela primeira vez uma aldeia onde outros colegas já atuavam. “Olha só essa nativa. Ela é muito bonita, e eu aqui pensando que eles iam ser muito feinhos”, diz uma das visitantes. “É, eles são seres humanos como nós, e Jesus também ora por eles”, replica um missionário mais velho.
Na trama, um grupo de aborígenes implora para que os missionários se desloquem para outra aldeia para catequizar seus parentes e livrá-los do inferno após a morte. Diante da negativa dos religiosos, que alegam não serem numerosos o suficiente para a tarefa, a peça se encerra com uma choradeira coletiva.
A audiência é, assim, estimulada a unir-se ao esforço evangelizador para impedir que tantos povos não cristianizados tenham destino semelhante ao dos aborígenes papuásios.
Encenações também estão entre as estratégias da organização americana New Tribes Mission para angariar missionários.
A entidade montou na Pensilvânia uma réplica de uma aldeia Yanomami, povo que habita o Brasil e a Venezuela. Nela, voluntários interagem com atores que se passam por membros do grupo indígena.
A experiência é oferecida durante um retiro de fim de semana batizado de Wayumi – termo que, segundo os organizadores, é adotado pelos Yanomami para se referir a viagens curtas.
Segundo a organização, o retiro “dará a você e a seu grupo uma visão panorâmica de povos ainda não contatados pelo mundo. Ela abrirá seus olhos para o que deve ser feito para alcançar esses grupos”.
O esforço para recrutar voluntários busca preencher lacunas na evangelização de índios na Amazônia.
Em 2017, numa palestra na Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina (PR), o pastor Ronaldo Lidório – um dos principais nomes da atividade missionária no Brasil – disse que indígenas são o grupo populacional brasileiro com maior carência de missionários, seguidos por ribeirinhos, quilombolas, ciganos e sertanejos.
Segundo Lidório, 103 etnias brasileiras não têm a presença de qualquer missionário.
“Quarenta delas estão abertas para o Evangelho, mas a realidade é que não há missionários”, afirmou.
Não há dados oficiais sobre o avanço de igrejas evangélicas entre povos indígenas brasileiros. Em alguns povos, porém – caso dos Terena, em Mato Grosso do Sul, e dos Baniwa, no Amazonas – a maioria dos integrantes se declara evangélica.
Em algumas regiões, como no Alto Rio Negro, há forte presença católica entre os indígenas por influência de missões instaladas nos últimos séculos. Hoje, porém, a Igreja Católica diz ter abandonado a evangelização de indígenas e valorizar as crenças ancestrais dos grupos.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica, diz atuar junto a mais de 180 povos indígenas brasileiros respeitando o protagonismo dos grupos e “dentro de uma perspectiva mais ampla de uma sociedade democrática, justa, solidária, pluriétnica e pluricultural”.
Pelas regras atuais da Funai, missionários só estão absolutamente impedidos de entrar em territórios de povos indígenas isolados – restrição que vale para qualquer outro grupo de pessoas.
Para ingressar nas demais terras indígenas, eles precisam de uma autorização da Funai ou da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
Segundo servidores da Funai que não quiseram ser identificados, muitos missionários obtêm autorizações com a justificativa de prestar serviços à comunidade, como assistência em saúde.
De acordo com o Portal da Transparência, a entidade filantrópica que mais recebeu recursos da União nesta década foi uma ONG presbiteriana que atua junto a indígenas – a Missão Evangélica Caiuá, que mantém um convênio com o Ministério da Saúde para administrar 18 dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No período, a ONG – que em seu site diz trabalhar “a serviço do índio para a Glória de Deus” – recebeu cerca de R$ 2 bilhões em verbas públicas.
Outras entidades recebem autorização para entrar em terras indígenas com base em convites da própria comunidade. Em alguns casos, indígenas que moram em cidades e já foram catequizados servem de ponte entre os missionários e suas aldeias de origem.
Há ainda missionários que conseguem autorizações com o pretexto de estudar línguas indígenas – prática que chegou a ser apoiada por um dos patronos do indigenismo brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1977).
Enquanto trabalhava no Serviço de Proteção ao Índio (órgão antecessor da Funai), Darcy Ribeiro abriu portas para que missionários estrangeiros do Summer Institute of Linguistics (SIL) se instalassem em aldeias e estudassem línguas nativas brasileiras, julgando que o trabalho ajudaria a preservá-las.
A aliança do Estado brasileiro com o grupo foi rompida, mas o SIL se mantém ativo no país. Outra influente entidade no ramo é a Associação Linguística Missionária Evangélica (Alem), criada a partir de uma subdivisão do SIL, a Wycliffe Bible Translators.
A Alem diz em seu site que há no Brasil 69 línguas indígenas sem a bíblia traduzida, de um total de 274. A organização diz trabalhar “com o sonho de tornar a Palavra acessível a todos os povos e línguas ainda não alcançados”.
Segundo servidores da Funai, missionários se aproveitam de zonas cinzentas na legislação para expandir suas operações entre indígenas.
Muitas vezes, dizem eles, religiosos que entram nas aldeias com a justificativa de prestar serviços ou estudar línguas aproveitam o acesso para tentar converter indígenas durante sua estadia ou conseguir o aval para a instalação de uma missão. A Funai só é acionada nos casos em que essa atuação gera conflitos.
A SIL e a ALEM não responderam a pedidos de entrevista da BBC News Brasil sobre suas práticas.
Questionada sobre as regras para autorizar o trabalho missionário em aldeias, a Funai disse em uma nota que a Constituição determina o respeito aos “costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas”. “Assim, a Funai não autoriza o ingresso de pessoas com projeto de realizar trabalho missionário de evangelização, a menos que esta seja uma demanda da própria comunidade. Mesmo os estudos e pesquisas só ocorrem com o diálogo com os povos indígenas, que devem manifestar interesse no ingresso solicitado”, diz a fundação.
Para Dinaman Tuxá, o coordenador-executivo da Apib, o trabalho missionário demoniza saberes tradicionais e “tenta desaculturar nossas comunidades”.
Ele afirma que, embora indígenas brasileiros lidem com missionários desde 1500, nos últimos anos, evangelizadores têm se articulado com outro grupo poderoso na política brasileira, o agronegócio, impondo riscos adicionais às comunidades.
“Eles não querem mais só evangelizar, eles querem trazer as comunidades para o meio urbano e liberar nossas terras para plantar soja, tirar minérios, criar gado.”
Para Edward Luz, presidente da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), a evangelização altera a cultura de um povo tanto quanto o provimento de serviços de saúde e de educação. “A partir do momento em que você dá um antibiótico, um remédio antimalária, você alterou toda a cosmovisão de um povo. Você vai negar dar saúde para o índio?”
Ele afirma que missionários deveriam ser livres para atuar em qualquer comunidade indígena, inclusive as isoladas, e que esse trabalho pode salvar alguns grupos da extinção.
“Qualquer povo com menos de 400 pessoas está fadado ao extermínio por razões óbvias, como a consanguinidade. Têm que haver uma política de aproximação desses povos”, defende.
Edward Luz protagonizou um dos episódios que fizeram a Funai mudar sua política em relação a índios isolados, estabelecendo restrições ao contato. Ele diz ter sido o primeiro não indígena a contatar o povo Zo’é, no norte do Pará, em 1982.
Em “Memórias Sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil”, livro organizado pelo jornalista Felipe Milanez, o ex-servidor da Funai Fiorello Parise diz que o contato foi feito à revelia da Funai e causou grande mortandade entre os Zo’é.
Segundo Parise, a presença dos missionários contaminou os indígenas com gripe e malária, doenças até então inexistentes no território. Ele afirma ainda que na aldeia “só havia medicamento para uso dos próprios missionários”, e que os religiosos criaram uma estrutura “tendo os Zo’é para lhes oferecer artesanato, servirem-lhes caça, pesca e outros serviços mais”.
Em 1987, a Funai determinou que iniciativas de contato com povos isolados deveriam partir sempre dos próprios grupos – e que cabia ao Estado somente proteger e demarcar suas terras.
Em 1991, os missionários da MNTB foram expulsos do território Zo’é.
Edward Luz diz que as afirmações de Parise sobre a introdução de doenças na comunidade são falsas. Ele afirma que provavelmente a malária chegou ao território por meio de macacos, que estão entre os hospedeiros da doença.
“Depois que cheguei no Amazonas, peguei oito malárias, lá no meio deles. E dizem que eu fui lá levar malária? É inconcebível.”
Sobre os relatos de privilégios que os missionários teriam entre os indígenas, ele diz que se tratava de cuidados para conciliar “dois mundos completamente diferentes”.
“Eles queriam isso ou aquilo e você não pode, dentro da perspectiva sociocultural, dar ou distribuir essas coisas, como alguns erroneamente fazem. E se ele (índio) te dá algo, espera receber algo na frente. Éramos parcimoniosos para não criar uma dependência econômica.”
Luz diz que os missionários reverteram “o processo de extinção completa daquele povo” e que a expulsão do grupo se deveu a fatores políticos.
“Havia interesses de pessoas para estudar aqueles povos e não queriam a presença de missionários no meio deles. Até então, a Funai nos elogiava, temos relatos e afirmações fantásticas deles a nosso respeito”, diz.
Da BBC