Saiba como laboratórios identificam restos mortais de desaparecidos na ditadura

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O corpo do ex-bancário e líder sindical Aluísio Palhano Pedreira Ferreira foi identificado 47 anos após seu desaparecimento durante a ditadura militar brasileira. A ossada dele estava na vala comum descoberta nos anos 1990 no cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus.

A identificação do também ex-integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi anunciada durante o 1º Encontro Nacional de Familiares, promovido em Brasília pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ligada ao governo federal.

Os trabalhos para identificar restos mortais encontrados em uma vala comum do cemitério de Perus viraram um esforço internacional – e, após três décadas, a epopeia parece próxima do fim.

Em setembro, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP) enviou a segunda remessa de amostras para identificação na Europa. No total, já foram enviadas 350 amostras para o International Commission on Missing Persons (ICMP), com sedes em Sarajevo, na Bósnia, e em Haia, na Holanda.

O laboratório é especializado em análises de DNA de materiais ósseos degradados e de vítimas desaparecidas em contextos de violações dos direitos humanos, como no caso da ditadura militar brasileira (1964-85). O resultado da primeira leva foi a identificação de Dimas Casemiro, desaparecido havia 47 anos, anunciada em fevereiro deste ano.

“Quando houve a identificação do Dimas [Casemiro], a relação entre nossa equipe e os familiares se fortaleceu. Muitos deles encaravam a questão como uma causa perdida, mas depois da confirmação, a esperança reacendeu”, conta Samuel Ferreira, coordenador científico do GTP, que atua há quatro anos.

O GTP foi criado em 2014 pelo governo federal para organizar e identificar os restos mortais encontrados no cemitério paulistano. Foi a primeira vez em quase duas décadas que uma equipe foi designada especialmente para a tarefa. O grupo é um dos frutos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pela então presidente Dilma Rousseff (PT).

Trabalhos de reparação, justiça de transição, direito à memória e à verdade foram intensificados após a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2011. Na sentença do chamado Caso Gomes Lund, o País foi condenado por negligenciar violações cometidas pelos militares durante o combate à guerrilha do Araguaia, de 1967 a 1974.

A vala comum de Perus é o episódio mais conhecido dessa natureza no País. Segundo o relatório final da CNV, a prática foi replicada em Pernambuco, Pará e Rio de Janeiro, entre outras localidades.

As valas clandestinas são consideradas uma grave violação, pois o Estado brasileiro elaborou mecanismos de desaparecimento contra opositores sem prestar contas à sociedade. Pelo fato das vítimas não terem sido oficialmente localizadas, constitui-se um crime de natureza permanente – ou seja, não prescreve.

“Como fizemos uma sistematização completa dos materiais, construímos um banco completo de informações. Assim, podemos entender padrões das vítimas, como por exemplo a quantidade de homens, mulheres, idosos ou crianças que estavam ali. Esse tipo de informação é uma peça-chave para entendermos a violência daquele período”, explica Ferreira, do GTP.

Nascido em Pirajuí (SP), Palhano constituiu sua vida em Niterói (RJ), onde se formou em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e morou com a família – era casado com Leda Pimenta Pedreira Ferreira, com quem teve dois filhos.

Presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, liderou, em 1961, a greve geral da categoria em defesa de aumento salarial e do 13º salário.

A intensa atuação no meio sindical levou à cassação de seus direitos políticos logo após a decretação do Ato Institucional nº 1, que se seguiu ao golpe militar de 1964. Naquele ano, asilou-se na Embaixada do México e, de lá, partiu para Cuba. No início dos anos 1970, voltou ao país como integrante clandestino da VPR.

Segundo a Comissão Estadual da Verdade (CEV) de São Paulo, Palhano foi preso e torturado nas dependências do DOI-CODI paulistano pela equipe do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra em maio de 1971. Anos depois, em 1975, presos políticos denunciaram o assassinato do sindicalista, e o envolvimento do delegado da Polícia Civil Dirceu Gravina. Este, aliás, segue na ativa no órgão de segurança paulista.

O sequestro, tortura e assassinato de Palhano, oficialmente tratado como desaparecido, motivaram uma ação penal do Ministério Público Federal de São Paulo em 2012. A denúncia acusava Ustra e Gravina pelas violações, mas foi barrada pela Justiça brasileira sob o argumento de prescrição dos crimes. O caso foi negado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), e contou com o apoio da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que eximiu os juízes do TRF3 da necessidade de prestar esclarecimentos sobre a recusa.

Ustra e Gravina negaram em diversas ocasiões envolvimento com assassinatos e torturas durante a ditadura militar.

“O caso da vala clandestina de Perus traduz exemplarmente o nível de violações que foram realizadas, e essas descobertas contribuem para a pauta de memória, de justiça e Direitos Humanos no país. A cada identificação, a importância desse trabalho de esclarecimento da história se fortalece”, explica o coordenador-científico do Grupo de Trabalho de Perus, Samuel Ferreira.

A vala de Perus foi aberta durante a gestão de Paulo Maluf na Prefeitura de São Paulo, no início dos anos 1970. O cemitério Dom Bosco foi planejado para abrigar desconhecidos e indigentes – tornando-se o lugar ideal para a ocultação de vítimas dos agentes da repressão.

O cemitério fica afastado da região central e não possui uma clara organização de suas sepulturas. Há uma estrutura labiríntica, sem marcas ou indicadores das valas. Além disso, foi criado em um período de intensa atuação de grupos de extermínio na capital.

Estima-se que aqueles enterrados na vala foram mortos entre 1971 e 1975. Oficialmente, a sepultura clandestina foi aberta em 1976, e nela foram enterradas por volta de 1.500 pessoas. Sabe-se da presença de militantes que foram torturados e assassinados, e há suspeitas de que a maior parte das vítimas foram mortas por esquadrões de extermínio.

Em 1973, os irmãos Alex e Iuri Xavier Pereira foram os primeiros a serem localizados em Perus. Anos depois, em 1979, os militantes Flávio de Carvalho Molina, Gelson Reicher e Luis Eurico Tejera Lisboa também foram localizados, igualmente por iniciativa de familiares. Todos estavam enterrados em valas individuais sob nomes falsos, os mesmos usados na clandestinidade.

Após a redemocratização, uma brecha surgiu para tornar pública a existência da vala comum: tanto pelo conhecimento de familiares quanto pelo trabalho desenvolvido pelo jornalista Caco Barcellos, que havia descoberto laudos de necropsia falsificados durante a apuração de seu livro Rota 66. Os laudos estavam marcados com símbolos para remeter à oposição política dos militantes – considerados terroristas.

“As fichas que continham o T [de ‘terroristas’] remetiam aos laudos necroscópicos que também possuíam um T em vermelho e tinham sempre o mesmo histórico da morte: tiroteios com ordem de segurança, após ordem de prisão”, descreveu o jornalista em artigo em 2001.

O episódio ganhou as manchetes em 1990, durante a gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo. Foi formada à época uma equipe especial, chefiada pelo médico-legista Badan Palhares, além da criação da CPI de Perus, na Câmara Municipal de São Paulo. Dois nomes foram confirmados pela equipe de Palhares ainda no início dos anos 1990: os de Denis Casemiro e de Frederico Eduardo Mayr.

Porém, logo após a eleição de Maluf para a Prefeitura em 1992, os trabalhos foram gradualmente deixados de lado. Dali em diante, anos de idas e vindas, com as ossadas sendo transportadas entre universidades paulistas, como Unicamp e USP, sem respostas sobre o caso.

O grupo de trabalho de Perus norteia suas atividades por uma lista de 40 nomes de desaparecidos políticos que podem ter sido mortos e enterrados clandestinamente no local. A lista é dividida de acordo com cinco graus de probabilidade de cada um estar ali.

A divisão se pauta de acordo com diversos fatores, como registro no controle geral do cemitério – normalmente, eram usados os nomes falsos das vítimas; laudos assinados pelos médicos-legistas Harry Shibata e Isaac Abramovic, envolvidos em grande parte dos relatórios que omitiram marcas de tortura ou indícios de execução. Os dois eram membros do alto escalão do Instituto Médico Legal paulista nos anos 1970.

O grupo de trabalho também usa informações sobre passagens dos desaparecidos por estruturas como DOI-CODI, DOPS ou outros recintos usados pela repressão. Foram analisados os registros do cemitério entre 1971 e 1980, e mais de 7.000 documentos da CPI de Perus e do departamento de Medicina Legal da Unicamp. A pesquisa serviu para esclarecer a participação de agentes da repressão de diferentes instâncias no desaparecimento e assassinato de militantes.

“Dizemos que a compreensão do ‘caminho burocrático da morte’ dentro do aparelho estatal nos ajuda a entender a origem das pessoas ali enterradas e também auxilia na busca por desaparecidos. É nesse estudo que identificamos laudos periciais malfeitos, incongruências que denunciam o descaso para com essas pessoas”, explica Ana Paula Tauhyl, historiadora e arqueóloga do Grupo de Trabalho de Perus.

Para coletar as amostras enviadas ao ICMP, o grupo de Perus percorreu uma longa jornada. Em parceria com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), membros do GTP viajaram pelo Brasil em busca de familiares de desaparecidos políticos.

Ao todo, 80 pessoas de 35 famílias doaram amostras sanguíneas e genéticas. As amostras fornecem o material necessário para a comparação de DNA com os restos mortais da vala.

O grupo elabora relatórios sobre as características de cada ossada e reúne-se com um conselho que envolve representantes do governo e de especialistas para apurar as informações; então, os materiais são enviados ao laboratório europeu.

O procedimento é um desafio de antropologia forense, pois as mais de mil ossadas estavam desorganizadas e mal conservadas. Nas décadas de 1990 e 2000, os restos mortais deterioraram conforme eram transferidos de uma instituição para outra.

“Abrimos cada caixa para identificar quantas ossadas ali estão; depois disso, as lavamos, para remoção de fungos e outros detritos que podem inviabilizar a coleta (os fungos alimentam-se de colágeno dos ossos, o material mais rico para a coleta de DNA); depois, analisamos a ossada em busca de lesões, do sexo e de outras características determinantes para sua identidade; por fim, fazemos cortes para obtenção de material para análise genética”, detalha Ana Paula Tauhyl.

Então, as amostras são analisadas pela equipe do ICMP por meio de softwares desenvolvidos especialmente para extensas comparações de materiais degradados.

“Se associações de DNA são encontradas, há um trabalho conjunto com o grupo de Perus para avaliar e integrar evidências, resultando, esperançosamente, em identificações – e no tão esperado retorno dos desaparecidos aos familiares”, declarou o diretor de Ciência e Tecnologia do ICMP, Thomas Parsons, no recebimento da primeira leva, em março de 2018.

Além de coletar amostras sanguíneas, o objetivo também foi auxiliar no trabalho de reparação e direito à memória. Foi dada aos familiares a opção de acompanhar todo o processo, e cada caso é analisado isoladamente para garantir isonomia às vítimas. Na entrega da primeira leva, o coordenador-técnico do grupo de Perus foi acompanhado de um representante das famílias, Helder Nasser – sobrinho de Edgar Aquino Duarte, desaparecido há 45 anos.

“Os procedimentos periciais que realizamos seguem rígidos princípios técnicos, científicos, legais, éticos e humanitários. Esse conjunto de práticas rendeu frutos, como a aproximação de familiares que estavam afastados e desesperançosos, que acreditaram em nosso compromisso”, complementa.

A primeira remessa analisada resultou na identificação de Dimas Casemiro, desaparecido oficialmente havia 47 anos. Em agosto de 2018, a família conseguiu sepultá-lo, no interior de São Paulo. O coordenador-técnico do grupo de Perus informou à BBC News Brasil que outro envio está previsto para a segunda quinzena de dezembro, totalizando mais de 500 amostras.

As 250 amostras só puderam ser enviadas para a Europa por meio de apoio parlamentar. A verba anual destinada pelo governo à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que supervisiona os trabalhos em Perus, gira em torno de R$200 mil – recurso que mal supre suas tarefas mais básicas. Por ano, o orçamento anual da comissão precisa do repasse de emendas de congressistas para ser composto.

“Em geral, precisamos de algo como R$ 1,5 milhão para manutenção de equipe e das atividades conduzidas – como o Grupo de Trabalho de Perus, além de profissionais que investigam violações e desaparecimentos no Rio de Janeiro e também no Norte, por conta da guerrilha do Araguaia”, explica a procuradora da República e presidente da comissão, Eugênia Augusta Gonzaga.

Boa parte dos recursos entre 2017 e 2018 foram garantidos por meio de repasses feitos pela deputada Luiza Erundina (PSOL-SP). Mas há obstáculos políticos e financeiros.

Em 2017, houve suspensão temporária do envio de verbas para o Centro de Pesquisa em Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), criado para a análise das ossadas de Perus na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A comissão especial também teve problemas com repasses. “A incerteza quanto às nossas atividades é corriqueira. É possível que o Executivo atue para nos desmobilizar. Mas a existência e a dotação orçamentária da comissão são garantidas por lei, a mesma que criou a comissão durante em 1995. Então, se quiserem encerrar nossas atividades, precisarão revogar a lei”, conclui Gonzaga.

Da BBC News Brasil