Armar sociedade representa falta de conexão lógica
Para o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), do ponto de vista internacional, existe necessidade de padronizar-se o que se considera, em nível internacional, homicídios intencionais, e, para a definição usada pela referida Agência, trata-se da morte ilegal causada a uma pessoa por outra (elemento objetivo), sendo que o propósito do autor deve ser matar a vítima (elemento subjetivo) (1).
No ordenamento jurídico pátrio, o art. 121 do Código Penal brasileiro contempla a figura do homicídio doloso como a conduta do agente que, consciente e deliberadamente, mata alguém.
Nessa ordem de ideias, os dados do Atlas da “Violência 2018”, produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2), apontam que o Brasil registrou, no ano de 2016, 62.517 mortes violentas intencionais. Esse número corresponde à taxa de 30,3 mortes intencionais para cada 100 mil habitantes, o que é bem superior, por exemplo, na América do Sul, ao Uruguai, que apresenta taxa de 7,8 por 100.000 habitantes, em 2017, de acordo com o site Insight Crime (3), e 30 vezes maior que a taxa da Europa.
Entre 1980 e 2016, cerca de 910 mil pessoas foram mortas com uso de armas de fogo. O relatório conclui (4): “O fato é que a maior difusão de armas de fogo apenas jogou mais lenha na fogueira da violência letal. Conforme se pode observar no gráfico 7.1, o crescimento dos homicídios no país ao longo dessas três décadas e meia foi basicamente devido às mortes com o uso das armas de fogo, ao passo que as mortes por outros meios permaneceram constantes desde o início dos anos 1990”.
Por fim, nota-se que houve crescimento da taxa de crimes dessa natureza nas regiões Sul, Nordeste e, principalmente, Norte e estabilidade nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Os dados acima são, por óbvio, extremamente alarmantes. Nada obstante, servem para demonstrar que o país está a clamar por urgentes aperfeiçoamentos e investimentos orçamentários em políticas públicas de segurança pública — haja vista que, a resolução definitiva do tema “violência urbana” dá-se com investimento em educação, geração de empregos e melhoria da qualidade de vida de um povo —, desde a seara de policiamento preventivo e repressivo até a melhoria da atividade intersetorial de polícia judiciária, e, em última razão, inteligência policial, sem o que subsiste a impunidade a sobrepor-se ao Estado organizado.
Em última razão, a estatística acima está ‘umbelicalmente’ relacionada com fenômenos associados a facções criminosas — hoje evoluídas a verdadeiras organizações criminosas (OrCrim) —, aos grupos de extermínio, ao tráfico de drogas em larga escala por associações criminosas, ao descontrole estatal de grupos criminosos com grandes lideranças em presídios, além de homicídios casuais e violências de gênero.
A propósito, à luz de um viés nitidamente populista, tem-se argumentado, na atualidade, que o fato de o Brasil haver registrado o número 62.517 homicídios, no ano de 2016, seria justificativa para armar a sociedade civil, a convolar-se a “segurança pública” em “segurança pública realizada pelo povo”. Os defensores dessa ideia argumentam que isso não significa o “porte” (carregar consigo a arma de fogo pelos logradouros públicos), mas a “posse” (mantê-la na residência ou local de trabalho).
Ocorre que o número acima não tem relação alguma de causa e efeito com a “posse” de arma em residência ou local de trabalho. Ora, se os dados referem-se a homicídios dolosos (agente que, consciente e deliberadamente, mata alguém, notadamente com arma de fogo), isso significa que estão relacionados aos chamados “crimes contra a vida” do Código Penal. São as mortes que decorrem de assassinatos, de facções criminosas, de mortes perpetradas em logradouros públicos.
A ideia de ter uma arma em casa poderia (até) ter algum nexo causal com virtual defesa de “crimes contra o patrimônio privado (furtos e roubos de residência ou comércio), porém o Brasil não tem índices preocupantes com relação a tais delitos e os dados estão devidamente controlados pela Segurança Pública.
Outra estatística invocada, de forma flagrantemente impertinente, a justificar a “posse” de arma de fogo, tem sido o número anual de acidentes de trânsito no Brasil com vítimas letais, que, no ano de 2016, chegou a 37.345 — que é o último ano com dados disponíveis no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
Sucede que, novamente aqui, não cabe cotejar número de mortes decorrentes de homicídio doloso – intencional (62.517) com número de mortes que decorrem de acidentes de trânsito (37.345), ou seja, de colisões, cujo sinistro decorre, quando muito, de negligência, imprudência ou imperícia. Tecnicamente, não há como realizar cotejo estatístico entre os dois grupos de mortes porque há incompatibilidade da variável qualitativa (no primeiro grupo as mortes são decorrentes de homicídio doloso, ao passo que, no segundo grupo, decorrem de acidentes de trânsito).
Portanto, não há dúvida de que, sob o ponto eminentemente jurídico, o jogo de números que tem sido empregado para predizer a necessidade de armar-se a sociedade não passa de empirismo que objetiva, em última razão, delegar a pessoas sem qualquer preparo técnico e instrumental a atividade estatal de segurança pública, cuja prestação é, e sempre deverá ser, função exclusiva “de” e “do” Estado (Constituição Federal, art. 144).
Assim, espera-se que a Segurança Pública atue, sempre, de forma eficiente, inteligente e aparelhada de forma exclusiva pelo Estado e ao largo de populismo que não deve mover a supremacia do interesse público.
Do Estadão