Brasil impulsiona e América latina tem pior índice de extrema pobreza
Em 2002 havia 57 milhões de pessoas em situação de miséria na América Latina, cifra que subiu para 62 milhões em 2017 e que tornou a engordar em mais um milhão no ano passado, chegando a 63 milhões de latino-americanos em 2018, segundo a projeção da CEPAL. “Ainda que a região tenha obtido avanços importantes entre a década passada e meados da atual, desde 2015 foram registrados retrocessos, particularmente em termos de pobreza extrema”, alertou Alicia Bárcena, responsável pelo braço das Nações Unidas para o desenvolvimento econômico na região, ao mesmo tempo em que fazia um apelo por políticas públicas complementares de proteção social, inclusão trabalhista e redistribuição de renda.
O aumento da pobreza extrema da América Latina se explica, em boa medida, pela má evolução do Brasil, disparadamente o país mais populoso da região, que entre 2015 e 2017 viu a pobreza extrema saltar de 4% para 5,5% da sua população. “Embora em muitos países tenham ocorrido reduções ou estancamento da pobreza extrema [Paraguai, Colômbia, Costa Rica, Panamá, Chile e Equador], na hora de analisar a situação conjunta da região impacta o que acontece em países com muita população, como o Brasil”, explicou Xavier Mancero, chefe de estatísticas da CEPAL, nesta terça-feira na capital chilena.
O relatório, que aborda a discrepância generalizada entre os dados nacionais e os do próprio organismo – que fixa seus próprios critérios para unificar a informação –, não pôde nem sequer analisar as cifras da Venezuela, uma das economias que registraram pior evolução nos últimos anos: “Desde 2015 não temos dados desse país”, observou Bárcena. A nula credibilidade dos dados fornecidos pelo Governo de Nicolás Maduro torna impossível que essa agência da ONU possa oferecer uma cifra certeira mediante o filtro estatístico aplicado a todas as nações latino-americanas e caribenhas.
A taxa de pobreza geral por renda, por sua vez, manteve-se em 30,2% em 2017 (184 milhões de pessoas em toda a América Latina), uma taxa idêntica à registrada um ano antes.
Melhores notícias vêm pelo lado da desigualdade de renda, um dos grandes calcanhares-de-aquiles da América Latina e Caribe, a região mais díspar do mundo, que abriga algumas das maiores fortunas do planeta e também milhões de pessoas em condições de fragilidade extrema. A disparidade de renda entre os lares e as pessoas se reduziu “apreciavelmente” na região desde o começo da década de 2000: nos 18 países da América Latina analisados, a média simples dos índices de Gini, o indicador mais utilizado globalmente, caiu de 0,543 em 2002 para 0,466 no ano passado (o índice zero significa igualdade absoluta). Entretanto, o ritmo de redução se desacelerou nos anos recentes: enquanto entre 2002 e 2008 a diminuição anual média da desigualdade foi de 1,3%, entre 2008 e 2014 o ritmo baixou para 0,8%, e entre 2014 e 2017 para 0,3%.
Colômbia, El Salvador e Paraguai mostraram grandes reduções de sua desigualdade por renda no período total analisado, enquanto outros, como Honduras e a República Dominicana, sofreram deteriorações. Apesar dessa melhora, a ainda forte diferença de renda entre os latino-americanos continua “travando o desenvolvimento” e sendo uma “barreira” para a erradicação da pobreza, a ampliação da cidadania e a própria governabilidade democrática. “Há uma grande lacuna por fechar em relação aos países desenvolvidos”, salientou a secretária-executiva da CEPAL.
Os indicadores, destacam os técnicos do organismo da ONU, “confirmam um panorama com interrogantes para uma região que enfrenta desafios de grande magnitude quanto à inclusão social e trabalhista de sua população, e na qual persistem profundas desigualdades, especialmente frente ao atual contexto econômico [com um crescimento que tende ao enfraquecimento tanto no bloco desenvolvido como no emergente] e as transformações em curso no mundo do trabalho”. Há turbulências adiante, e a América Latina tem que se preparar para um cenário marcado pela incerteza.
O trabalho continua a ser o caminho mais rápido para superar a carestia, mas o mercado de trabalho de diferentes países da região ainda se caracteriza pela oferta insuficiente de empregos e por lacunas “significativas” na qualidade desses empregos, no acesso à proteção social e na renda do trabalho”, que em uma alta proporção é inferior ao salário mínimo legal [um esmagador 40% do total de trabalhadores latino-americanos, especialmente jovens, idosos e mulheres, de acordo com os últimos registros] e que é necessário para superar a pobreza e alcançar níveis adequados de bem-estar, por isso uma proporção significativa de pessoas empregadas trabalha por muitas horas”.
Outro sinal da disfuncionalidade do mercado de trabalho na região: um em cada cinco trabalhadores latino-americanos tem renda do trabalho abaixo da linha de pobreza de seu país, cifra que chega a 35% no caso da população rural. Tudo isso apesar de longas jornadas diárias, em muitas ocasiões acima do prescrito na lei.
O flagelo da informalidade continua sendo, ano após ano, a marca registrada do mercado de trabalho da América Latina e do Caribe. Quais as consequências para os trabalhadores ficar de fora dos canais formais de contratação? A CEPAL é clara: falta de acesso à cobertura previdenciária na saúde e nas aposentadorias, a dias de trabalho definidos – incluindo descanso semanal e férias anuais remuneradas – ao seguro-desemprego, por acidente e doenças ocupacionais, bem como à proteção de maternidade e paternidade. Ficam, portanto, com a pior parte. E não parece haver uma mudança de tendência em favor da formalização de seus empregos: “As transformações no mundo do trabalho associadas à revolução tecnológica podem aumentar ainda mais a proporção de trabalhadores nesta situação”, sentencia o estudo, em referência implícita a plataformas digitais que favoreceram o trabalho por conta própria.
Apesar de uma desaceleração no último ano analisado, 2016, os gastos sociais mantiveram a tendência de alta, passando em pouco menos de duas décadas de 8,5% do PIB para 11,2%. Em termos per capita, essa fatia praticamente dobrou entre 2002 e 2016, até beirar 900 dólares (3.400 reais). “Devemos reconhecer que os países fizeram avanços muito importantes para aumentar os gastos sociais”, disse a chefa da CEPAL. Proteção social, educação e saúde continuam a ser os três principais destinos deste tipo de despesa. Por países, Chile e Uruguai são os que aportam mais recursos por pessoa para políticas sociais (2.387 e 2.251 dólares, respectivamente), seguidos por Brasil (1.631), Argentina (1.469) e Costa Rica (1.176). Por outro lado, a região centro-americana e a Bolívia estão muito aquém: El Salvador e o país andino alcançam uma média anual de 310 dólares, e a Guatemala, Nicarágua e Honduras estão abaixo dos 220 dólares.
Apesar do “importante avanço” da região no capítulo sobre gastos sociais, os técnicos do órgão supranacional destacam os “grandes desafios do financiamento das políticas sociais”, especialmente nos países com maiores índices de pobreza. Além disso, observam, “os níveis de gastos ainda são muito menores do que os dos países desenvolvidos”. “Diante de um contexto econômico fraco”, concluiu Bárcena, “é imperativo desenvolver simultaneamente políticas de inclusão social e trabalhista. A política social não pode deixar ninguém para trás”.
Do El País