Frase infeliz de Vélez faz a universidade parecer tão inacessível quanto Saturno

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Leia a coluna de Leandro Beguoci, diretor editorial de Nova Escola. Ele explica sobre o que funciona (e o que não funciona) na educação brasileira.

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O ministro da educação acredita nos nossos alunos?

O Jardim Boa Vista é um bairro de classe média baixa em Caieiras, na Grande São Paulo. Foi o lugar em que cresci durante os anos 1990. Nós fazíamos festa para celebrar a chegada do asfalto (não é legal jogar futebol sobre paralelepípedos) e sonhávamos com o dia em que o esgoto não correria mais pela sarjeta, empesteando o verão (e as nossas bolas de futebol).

Era um bairro de migrantes nordestinos, geralmente do Piauí, e de meia dúzia de descentes de italianos, quase todos ex-agricultores. Era um mundo povoado por pedreiros, donas de casa, empregadas domésticas, serralheiros. E era um planeta quase intocado pelo ensino superior, com uma exceção: a minha casa.

Da minha turma de amigos, nenhum foi para a universidade. Daquela turma que passava as tardes empinando pipa e fazendo guerra de mamona com estilingue, fui o único que concluiu o ensino superior. Os meus melhores amigos de duas décadas viraram seguranças de supermercado, motoristas de ônibus. Alguns tiveram filhos muito cedo, e as crianças estão seguindo o mesmo caminho dos pais e avós. É um ciclo que parece inquebrável. As pessoas chegam, no máximo, ao ensino médio. A prioridade é trabalhar o quanto antes.

“Ah, Leandro, para com isso. Eles escolheram esse caminho, é direito deles. Você está sendo preconceituoso!” Sim, é um jeito de ver a situação. Porém, deixe eu continuar, não desista ainda. Minha questão não é o trabalho manual, extremamente importante. A minha questão é a falta de escolhas.

Um dos meus amigos sonhava em ser advogado. O outro queria ser engenheiro para desenvolver novos tipos ônibus. Era tão obcecado com o assunto que passou a adolescência desenhando coletivos. O máximo que chegou perto do sonho foi virar motorista dos coletivos da cidade. Naquele caldo de esperanças frustradas, álcool e depressão são fatos da natureza.

Obviamente, muitos fatores influenciam as trajetórias de cada pessoa. Como diz uma velha frase, um indivíduo é sempre mais misterioso do que uma multidão. Porém, nunca nos enganemos, há alguns padrões que se repetem e influenciam a vida de milhares de pessoas. Em educação, um deles se chama altas expectativas.

Como explica o pesquisador Ernesto Faria, do Iede (Interdisciplinariedade e Evidências no Debate Educacional), há uma relação muito forte entre a crença dos professores no potencial dos estudantes e o quão longe estes alunos vão avançar. Neste texto para a Nova Escola, Ernesto resgata o trabalho dos psicólogo Robert Rosenthal e Lenore Jacobson sobre o efeito Pigmaleão.

Na mitologia grega, Pigmaleão é um escultor que se apaixona pela própria obra –e consegue até transformá-la em gente graças a uma oferta à deusa Afrodite. Nas salas de aula, Rosenthal e Jacobson mostraram que professores são cruciais para a motivação dos alunos.

“No estudo, um grupo de alunos de uma escola da Califórnia fez um teste de QI no início e ao final do ano. No início, os professores foram informados de que um grupo de alunos estava prestes a ter um período de rápido crescimento intelectual, quando, na verdade, o resultado deles havia sido semelhante ao dos demais. Ao final do ano letivo, porém, os alunos que os professores acreditaram que tinham desempenho potencial acima da média, de fato, se sobressaíram”, conta Ernesto. É como uma profecia que se autorealiza.

As altas expectativas, sozinhas, não determinam o sucesso escolar. É bom deixar isso claro antes que vire uma paranoia. Boa educação é fruto de um conjunto de fatores, e o professor não pode ser responsabilizado por tudo. Porém, alguns são cruciais –e acreditar nos estudantes é um desses fatores. Não é tudo, mas tem um bom peso.

Quando volto às memórias de infância e adolescência, tenho algumas cenas bem claras na cabeça. Meus pais sempre acreditaram que eu poderia ir longe. Mesmo com pouquíssimos recursos naqueles anos difíceis, eles me falavam de universidades.

Na escola, as professoras faziam questão de elogiar meus textos e de dizer aos meus pais que eu tinha cara de universitário. Eu simplesmente sentia que a escola era para mim. Meus amigos, não. Sem referência escolar em casa (muitos eram filhos de pais analfabetos), tiveram o primeiro contato com livros nas escolas. As dificuldades eram naturais, e muitos foram humilhados pelos professores.

Lembro até hoje de um deles que começou a se chamar de “Burrão”, com orgulho, para tirar a carga negativa do apelido dado por um docente. Era preciso uma força de vontade gigantesca e uma resiliência inacreditável para superar isso. Não é à toa que tão poucos passam por esse filtro. Não é à toa que temos tantas histórias bonitas de superação –justamente por não são a regra.

No nosso “funil educacional”, pouquíssimas pessoas chegam à universidade. Apenas 15% dos adultos entre 25 e 35 anos concluiu o ensino superior, uma taxa bem baixa na comparação com outros países. O problema é tão grave que o Brasil colocou uma meta no PNE (Plano Nacional de Educação) para aumentar expressivamente o número de matrículas –e provavelmente não vai cumprir.

Durante as eleições, o então candidato Jair Bolsonaro chegou a dizer que os jovens brasileiros tinham uma “tara” por educação superior. Porém, muitas pesquisas mostram que isso não é verdade. Nas periferias país afora a regra é pensar “a universidade não é para mim”, como mostrou reportagem da Folha. Na prática, o Brasil não tem altas expectativas sobre a sua juventude.

Infelizmente, essa ideia não morreu na campanha. O ministro da educação, Ricardo Vélez Rodriguez, disse recentemente que a “ideia de universidade para todos não existe”. Dificilmente um país vai universalizar o ensino superior, e factualmente Vélez está certo. Porém, a questão não é essa. Ele não estava fazendo um diagnóstico. Estava colocando sua posição sobre como vai encarar o ensino superior.

Na prática, ele faz justamente o oposto do que preconiza a ideia de altas expectativas. Num país com acesso tão baixo à universidade, a frase enfraquece a esperança de milhares de pessoas semelhantes aos meus amigos de Caieiras.

Para muitas pessoas, entrar na universidade (e escapar de salários baixos e empregos precários) é uma das únicas razões para concluir a educação básica. Ao criticar a ideia de universidade para todos, Vélez acaba atacando, por tabela, a ideia de escola para todos. Aliás, a ideia de escola “só para os inteligentes” é uma crença que resiste a morrer no país.

Como professor universitário, Vélez sabe que as palavras têm consequências. Num país como o Brasil, de escolarização tão recente, as palavras podem ser trágicas –especialmente se virarem ideologia oficial. O país precisa mostrar que a educação é direito de todos, e isso precisa ser uma crença em todas as escolas do Brasil, como já é em cidades como Coruripe (AL), Novo Horizonte (SP) e Sobral (CE).

Só assim, nós, como sociedade, poderemos dizer que cada pessoa é capaz de fazer suas próprias escolhas livremente. Não é preciso fazer demagogia barata ou prometer algo impossível. Basta, simplesmente, se comprometer de verdade com as crianças e adolescentes que hoje acham que a USP é tão inacessível quanto as luas de Saturno.

Da FSP