Mais mulheres na política também pode significar retrocesso
Os resultados das eleições de 2018 ao cargo de deputado federal mostraram um aumento de 51% na quantidade de mulheres que ocuparão o Congresso: das 513 cadeiras, 77 serão ocupadas por mulheres, em comparação às 51 eleitas nas eleições de 2014. No entanto, esse aumento quantitativo precisa ser qualificado, uma vez que os dados apontam para um crescimento também na quantidade de mulheres filiadas a partidos extremamente conservadores, como o PSL. Uma análise simples do posicionamento ideológico das eleitas considerando a posição dos partidos políticos aos quais são filiadas mostra que as deputadas de direita estão em maioria. Assim, a reivindicação pela presença de mulheres na política se revela mais complexa do que apenas o aumento do número de pessoas do sexo feminino ocupando cargos eletivos. Basta ser mulher para defender os direitos das mulheres? Que direitos são esses? De quais mulheres?
Quando falamos em direitos das mulheres, geralmente é feita uma associação direta a pautas feministas, tais quais a descriminalização do aborto, a equiparação salarial entre gêneros, a autonomia sobre o próprio corpo, entre outras. Porém, esse mesmo conceito pode assumir significados diferentes, e até mesmo opostos, entre as próprias mulheres. Isso torna-se evidente quando analisamos o discurso de candidatas e eleitas que se identificam com valores conservadores. A principal pauta defendida por essas mulheres é a criminalização do aborto, a qual se associa na visão delas à “defesa da vida”. Desse ponto de vista, ser contra o aborto é ser a favor do direito das mulheres, o que seria impensável na perspectiva feminista, que entende que a mulher deve ter o pleno direito sobre seu corpo. A deputada federal do PSL eleita com mais de um milhão de votos, Joice Hasselmann, afirmou em sua campanha nas redes sociais que “nós mulheres não precisamos do feminismo, precisamos de atitude”. É preciso reconhecer, portanto, que essas mulheres estão também reivindicando uma fala em nome de mulheres, mas de determinadas mulheres, cujos valores não vão de encontro com os ideais feministas.
O grande desafio instaurado então será a delicada articulação dos movimentos feministas com as deputadas eleitas e entre elas mesmas para a aprovação de projetos que promovam a igualdade de gênero e garantam os direitos das mulheres. Se as deputadas de esquerda quiserem ser maioria, elas necessariamente terão de se aliar ao menos com as do centro, caso contrário terão muita dificuldade em levar adiante seus projetos. Para isso, é preciso buscar convergências que superem as diferenças de valores, muitas vezes gritantes. Declarações dadas por algumas das deputadas de partidos conservadores indicam que a pauta do combate à violência contra a mulher pode ser um (talvez o único) ponto de encontro para alguma ação conjunta da bancada feminina. Por outro lado, a divisão que parece ser o principal desencontro entre as deputadas e em relação aos movimentos sociais é o combate à chamada “ideologia de gênero”. Esse termo, que consiste por si só em uma construção ideológica deturpada, é utilizado para desqualificar os avanços dos movimentos feministas e LGBT e pode ameaçar seriamente as conquistas desses grupos.
É intrigante notar, desse ponto de vista, que perigosos retrocessos nos direitos das mulheres poderão ser defendidos pelas próprias deputadas. A abordagem da teoria política sobre o embate entre o fato de ser mulher e o de representar mulheres, o qual opõe a política da presença à política das ideias, já foi explicado anteriormente neste blog e aparece mais uma vez como um problema na prática. Fruto desse embate está a noção de perspectiva, segundo a qual embora a ideologia possa se sobrepor às características descritivas, estabelece que a vivência de cada pessoa confere a ela determinada perspectiva, a qual não pode ser transferida a outrem. Assim, uma mulher na política, seja qual for sua posição ideológica, levará sempre sua vivência enquanto mulher, o que implicará em uma maior sensibilidade em relação a determinados assuntos e menor em relação a outros. É desse ponto de vista que a luta por mais mulheres na política pode continuar fazendo algum sentido.
As questões que nos colocamos para os próximos anos são: a perspectiva feminina será suficiente para criar consensos entre as mulheres eleitas para o Congresso Federal? A presença de mulheres conservadoras poderá gerar retrocessos na luta das mulheres por igualdade? Embora os prognósticos não sejam positivos e exista ainda muito a ser definido, o acompanhamento dos trabalhos legislativos dessas deputadas e a pressão da sociedade civil e dos movimentos sociais para garantir o avanço de suas reivindicações se farão indispensáveis nesse contexto.
Do Estadão