Moradores de Brumadinho relatam desespero da fuga: “som de filme de terror”

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“A barragem rompeu! Vim tirar o senhor daqui”, gritou um rapaz pela janela.

Era por volta de 12h30. Vera Souza Araújo Vilaça, de 64 anos, tinha acabado de chegar à casa de Geraldo, um senhor de 90 anos, que caminha com a ajuda de um andador. Havia quase dois anos que ela subia, todos os dias, os cerca de 500 metros que separavam sua chácara da de Geraldo, para lhe trazer o almoço, um agrado de vizinhança.

Estava um dia bonito, tranquilo, como a maioria dos dias no Parque da Cachoeira, bairro da zona rural de Brumadinho (MG). A paisagem ao fundo era de um vale muito verde, por onde corria um pequeno riacho. O barulho era o da roça: pássaros, galinhas, vacas, minas de água, o vento que atravessava o vale.

Até que surgiu o rapaz, arrendatário da terra de Geraldo, trazendo o alerta da tragédia. Ele rapidamente carregou o nonagenário para fora dali.

Um ano antes, Geraldo, morador antigo e experiente da região, havia feito uma previsão para Vera, durante as prosas que costumavam seguir a entrega do almoço: “Se um dia a barragem romper, tudo isso aqui vai embora, não vai sobrar nada”.

Vera e o marido, também chamado Geraldo, nunca tinham visto a barragem da Vale, localizada há cerca de sete quilômetros dali. Mas o ancião lhes tinha garantido: era muito grande e, se rompesse, iria percorrer todo o vale, destruir todas as casas e matar quem estivesse pela frente.

Após o grito de alerta do rapaz que veio salvar Geraldo, Vera se virou para avistar sua casa ao longe. Estava localizada na mesma colina, mas bem abaixo —portanto, uma área mais propensa à passagem da avalanche e mais insegura. Lá, o marido a aguardava para almoçar e seu irmão tirava um cochilo.

Para chegar até eles e avisar do rompimento da barragem, Vera precisaria fazer o caminho contrário de uma rota de fuga: em vez de ir para um local alto, descer por um caminho que certamente seria atingido.
Nem por um instante ela hesitou: desceu correndo para salvar a família, enfrentando o risco de ser tragada pela lama no meio do trajeto.

“Passei debaixo de uma cerca de arame farpado, corri por uma pinguela de quatro metros (uma ponte de tábua que atravessa um corpo d’água, com um corrimão de bambu, por onde a população costumava passar devagar e com cuidado para não cair), e corri até chegar em casa. Eu não sei de onde veio essa minha força. Meus nervos da perna estão todos doloridos até agora”, conta Vera, que se aposentou por invalidez devido a uma trombose e, nos últimos anos, quebrou a perna três vezes.

Vera chegou antes da avalanche. Primeiro, acordou aos berros o irmão, Manuel Souza Araújo, de 57 anos, que dormia no rancho. Depois, entrou correndo em casa.

“A barragem rompeu!”, gritou para o marido, Geraldo do Carmo Vilaça, de 70 anos. “Ele estava sentado na mesa do almoço me esperando, quieto. Se eu não tivesse ido para lá (avisá-lo), a lama tinha pegado ele”, diz.

Depois do aviso de Vera, “foi o tempo de levantar e fugir. Nós tivemos 3 minutos. Não tinha mais tempo, a avalanche já estava há 100, 50 metros da casa da gente”, conta Geraldo. Naquela altura, a lama já havia levado o refeitório e a área administrativa da Vale, e eliminado a Pousada Nova Estância. Agora, se aproximava do bairro Parque da Cachoeira.

Geraldo abriu o portão da garagem e destrancou o carro. Enquanto isso, Vera foi antecipando a fuga, correndo por uma rua íngreme, visando alcançar o topo. Mas a chave do carro se perdeu entre o estofado. “Não dava tempo de procurar. Só restava correr”, lembra Geraldo.

Ele olhou para cima e viu que a mulher ia conseguir se salvar. Mas, no sentido contrário, começou a ouvir o barulho aterrorizador da enxurrada chegando.

“É um som assustador, da lama derrubando árvore grande, quebrando telha, levando casa, carro”, conta Geraldo. “É um som de filme de terror”, diz a esposa.

Então, Geraldo percebeu que não dava mais tempo de fugir pelo mesmo caminho da mulher –a lama chegaria antes dele alcançar o topo da rua. Em segundos, tomou uma decisão: correr para dentro de uma mata fechada atrás de sua casa, que também terminava em um ponto alto e seguro.

“Corri uma subida de uns 120 metros, sem parar. Eu parecia até um menino de 17 anos. Mas eu tenho 70. Acho que é o instinto de sobrevivência. Quando cansei, parei em uma árvore para descansar. E fiquei ouvindo a enxurrada. Se ela estivesse chegando, eu precisaria vencer o cansaço e correr mais alto”.

Tanto Vera quanto Geraldo ficaram a salvo, cada um em um ponto alto diferente. De onde estavam, viram a enxurrada da barragem levar tudo o que construíram ao longo de toda a vida.

A lama engoliu a casa, o carro, o pomar, a horta, as 50 galinhas, os cachorros, os documentos, os álbuns de fotos do tempo de juventude e dos filhos crianças. Em segundos, não restava mais nada. Hoje, tudo está abaixo de 10 metros de lama. O vale não existe mais. O terreno foi nivelado pelos rejeitos de minério de ferro da Vale.

Embora preocupados um com outro, Vera e Geraldo tinham a sensação de que os dois tinham conseguido se salvar. Depois que a lama atravessou o Parque da Cachoeira, ele caminhou até o topo da ladeira onde estava a esposa. Ver o marido vivo foi uma enorme comoção. “Nascemos de novo. Nós dois nascemos de novo”, diz Vera.

Além do casal, os demais vizinhos também se encontraram ali, para verificar se estava faltando alguém. Naquela parte do bairro, são cerca de 15 casas. Assim como Vera, todos os moradores fugiram alertados por vizinhos, familiares, amigos. Não houve nenhuma sirene, nenhum comunicado, ninguém especializado para ajudar. Todos perderam tudo. O vale virou lama.

Uma pessoa estava faltando: o irmão de Vera, Manuel. A expectativa do casal era que ele tivesse fugido por algum outro caminho, assim como Geraldo, e acabasse aparecendo. Mas isso não aconteceu. Seu nome está na lista de desaparecidos –que, na segunda-feira (28), tinha 279 pessoas.

Três dias após a tragédia, Vera está perdendo as esperanças de encontrar o irmão vivo. “Se a sirene tivesse tocado, a gente teria muito mais minutos para fugir. A gente podia ter ajudado o Manuel, forçado ele a sair. Mas só deu tempo de correr. Se ficássemos mais alguns segundos, teríamos morrido os três”, diz Geraldo.

“O que mais eu vou sentir falta da minha vida antiga é o Manuel. Os bens materiais não importam. Eu só queria ter podido salvar o meu irmão, assim como eu consegui salvar meu marido. Aí, eu estaria completa, mesmo sem ter mais nada”, diz Vera, muito emocionada.

Vera e Manuel compraram a chácara em 2006, procurando um local tranquilo para se aposentar. Antes, viviam em uma cidade próxima —ele, funcionário da empresa de saneamento de Minas Gerais, ela, empregada doméstica. Queriam ter uma horta, um pomar, criar galinhas.

No início, nem sequer sabiam que, perto dali, havia uma barragem de mineração. Muito menos imaginavam que aquele poderia ser um local de risco, o trajeto por onde passaria o rejeito em caso de rompimento. Afinal, no Parque da Cachoeira, não havia comunicados, placas, reuniões com moradores para tratar do assunto, planos de evacuação de emergência. Havia apenas o vale, de onde não se via nenhum pedaço da mina do Córrego do Feijão.

Por isso, nem quando ocorreu a tragédia de Mariana, em 2015, Vera e Geraldo ficaram preocupados. Nem eles, nem a maioria dos vizinhos.

Até que, em 2018, esse clima de tranquilidade foi rompido: a Vale começou a instalar torres com sirenes perto do Parque da Cachoeira. “Sirenes para alerta de rompimento da barragem, para fuga mesmo”, diz Geraldo. Uma delas foi colocada bem em frente do terreno do casal, do outro lado do vale, há uns 500 metros. Assim, toda vez que saiam de casa, viam o poste de emergência, com uns 12 metros de altura.

Pouco depois da instalação das sirenes, funcionários da mineradora começaram a visitar as casas da região para aplicar um questionário, relata o casal. Anotavam os dados de todos os moradores e perguntavam: “Se for para sair correndo, há alguém na casa com problema de locomoção, algum idoso?”, lembra Geraldo.

Foi aí que o casal entendeu: a parte baixa do Parque da Cachoeira estava no caminho da barragem. A informação tinha um gosto amargo. O que era para ser uma vida tranquila poderia virar um pesadelo.
Vera, então, foi conversar com o velho Geraldo, o vizinho de 90 anos, para saber o que ele achava da situação. A resposta dada, de que a barragem era grande e perigosa, fez com que ela não sossegasse nunca mais. Todo dia, pensava no perigo da barragem romper. Seu maior medo era que isso ocorresse de noite, quando todos estivessem dormindo.

“Eu falava para ele: Geraldo, eu não tô mais satisfeita aqui, a gente podia procurar outro lugar para morar. Tudo que eu vou fazer eu lembro dessa barragem. À noite, eu fico sempre pensando”, relata Vera.

“A Vera sempre dizia para a gente ir embora. Mas não era fácil sair dali. Você leva uma vida inteira para construir sua casa. Porque a pessoa que tem poucos recursos vai construindo aos poucos. Depois de anos de construção, você chega num ponto que aquilo ali está pronto. E de repente você tem que deixar tudo porque tem ameaça de uma barragem? Não é fácil”, diz Geraldo.

As sirenes e os questionários alarmaram toda a comunidade. Para tentar acalmar os ânimos, em meados do ano passado, foi marcada uma reunião entre a Vale e os moradores do Parque da Cachoeira, no campo de futebol do bairro. A mineradora chegou a montar uma tenda no local e a exibir slides em um projetor, com informações sobre as barragens, segundo relatos dos moradores.

Adilson Chavez Ramos e Ademir Caricati, presidente e vice-presidente da associação de moradores local, a Acopapa, relatam que os representantes da Vale presentes na reunião tentaram tranquilizar a comunidade: não havia risco nenhum de rompimento. Podiam ficar tranquilos –prova disso seria que as instalações da própria empresa ficavam ali, logo após a barragem.

O vereador Juliano Lopes, de Belo Horizonte, estava presente na reunião. Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Vereadores, ele pretendia se eleger, naquele ano, a deputado estadual e contava com o apoio da comunidade. “Teve muito questionamento da população. Mas a Vale falou que estavam preocupados em excesso e que não havia necessidade disso, afinal, estava tudo monitorado.”

Após os episódios das sirenes, do questionários e da reunião, a Vale desapareceu do Parque da Cachoeira, contam Geraldo e Vera. “Depois de tudo aquilo, eu imaginava que iam treinar os moradores, criar um plano de fuga, soar as sirenes para a gente ver como que era. Mas a Vale não apareceu mais. Aquela sirene nunca tocou, eu nem sei qual é o som dela”, diz ele.

A partir daí, “a única notícia que a gente tinha da Vale era um jornalzinho que passaram a entregar em casa todo mês. Lá, eles publicavam as coisas boas que a Vale vinha fazendo”, ironiza.

Se a Vale havia ido embora da região, pensava Geraldo, então, isso devia significar que não havia perigo. “Eu pensei: se tivesse um risco real, eminente, a Vale teria continuado com a prevenção. Como o pessoal desapareceu, não voltou lá mais, imaginei que estava seguro”.

Já Vera insistia que deveriam ir embora dali. Falavam tanto sobre o assunto que chegaram a traçar uma rota de fuga imaginária.

“Eu falava: se a barragem estourar, eu subo pela ladeira. Se eu chegar até ali na (casa da) Sandra do Lúcio, eu tô salva. Já o Geraldo dizia: pois, eu não, eu passo aqui por dentro da mata”, lembra ela. “E na hora que aconteceu, nós trilhamos exatamente esse caminho. Eu subi pela rua e ele pelo mato”.

Salvar a vida, mas perder tudo. E depois, o que fazer? Geraldo só tinha a bermuda, o chinelo e a camiseta. Vera, a blusa, o shorts, o sapato. Naquela tarde de sexta-feira (25), depois que a barragem rompeu, o casal precisou virar as costas para o local onde haviam vivido por 12 anos e ir embora. Com eles, a angústia: o que aconteceu ao Manuel?

Na primeira noite, dormiram na casa de uma das filhas do primeiro casamento de Vera. Mas, logo na manhã seguinte, decidiram voltar para o Parque da Cachoeira, atrás de algum sinal do irmão de Vera. Nada.

Outros parentes também se distribuíram por Brumadinho, procurando por notícias dele. Sem sucesso. Vera não se conforma: se tivesse tocado a sirene, o irmão poderia estar entre eles.

“Eu acho que a Vale não estava preocupada com as pessoas. Acho que estava preocupada em atender a legislação. Tem que por sirene? Então colocaram a sirene. Se houvesse realmente uma preocupação com as pessoas, teriam dado sequência ao trabalho (de preparação para uma evacuação). E avisado as pessoas a tempo delas fugirem”, diz Geraldo.

Para ele, a Vale também falhou na proteção dos funcionários. “Como pode colocar o refeitório na parte debaixo da barragem? Onde já se viu isso?”, continua. O refeitório e a área administrativa da mineradora foram os primeiros a serem atingidos pelos rejeitos da barragem que se rompeu. Por ser horário de almoço, estavam cheios. A maior parte das vítimas estava ali.

“Daqui para frente, o mais importante é que (as empresas) sejam obrigadas a ter uma nova postura, para evitar novos desastres. Minas Gerais é um Estado de mineração. Segundo se informa, tem dezenas de barragens de rejeitos. Se não mudar a postura, vai acontecer novamente”, diz Geraldo.

No retorno ao bairro no sábado de manhã, Geraldo também quis refazer o trajeto da fuga junto com um dos filhos. “Esse aqui é o lugar por onde meu pai correu para fugir da enchente de rejeito. É um morro, fica no fundo de onde ele morava. É uma mata fechada. A sorte dele foi que ele conhecia mais ou menos o caminho”, narrou Cléber, o filho, em um vídeo gravado por celular.

No fim do trajeto, avistaram o local onde ficava a chácara. “Não existe mais casa, foi soterrada. Não tem nenhum vestígio. É um mar de lama, simplesmente. Pelo cálculo que fizemos, deve estar há 10 metros de profundidade”, fala Geraldo.

Entre tantas tristezas, uma pequena alegria: no caminho para retornar ao Parque da Cachoeira, Vera e Geraldo encontraram Nilza, uma das cinco cadelas do casal. Havia sido resgatada pelos bombeiros, completamente cheia de lama, e abrigada por uma família no bairro.

“Ela ficou muito feliz de me ver. E eu, de ver ela!”, exclama Vera, com um enorme sorriso. “É uma sobrevivente!”. “Fiquem tranquilos, eu cuido dela. Vocês buscam quando puderem”, disse a dona da casa. Nilza teria que esperar. Por enquanto, era preciso reorganizar a vida.

Ainda em Brumadinho, a família Vilaça foi a um prédio da Vale e informou que havia perdido tudo. Logo, passou a receber atendimento da mineradora. “É preciso elogiar o que funciona: fomos muito bem atendidos pela Vale depois do que aconteceu. Estão nos dando toda a atenção”, confessa Geraldo.

Diante de um novo caso de desabrigados pela lama, a mineradora os encaminhou para um hotel. Porém, não em Brumadinho ou nas cidades vizinhas, mas em Belo Horizonte, a mais de 50 quilômetros de distância. Assim, seus filhos precisam se deslocar até a capital mineira para visitá-los.

É a primeira vez que Vera e Geraldo ficam em um hotel. A tranca da porta, toda moderna, incomoda: “A gente é caipira, não sabe direito como funciona essas coisas”, diz Vera, dando risada.

Em vez da tranquilidade do vale, os novos hóspedes agora convivem com o barulho de automóveis até tarde da noite, já que a hospedagem fica em uma larga avenida no bairro da Gameleira. A paisagem é árida, sem verde.

Os novos vizinhos são os mesmos do Parque da Cachoeira. Praticamente todo o segundo andar do hotel está preenchido por famílias que tiveram as casas destruídas. Em outros andares, também há mais famílias atingidas pelo rompimento da barragem. Mas os hóspedes têm dificuldade para visitar quem está em outro piso, pois o elevador precisa ser ativado com um cartão que só dá acesso ao próprio andar.
Os quartos são pequenos, mas confortáveis. “O hotel é ótimo, não tem nada que reclamar. O problema é a ficha cair”, diz Geraldo.

“Nossa vida era em uma chácara de dois mil metros quadrados, com uma série de atividades. Agora, é só um apartamentozinho nesse hotel. A gente está aqui aguardando o que vai acontecer”. Cuidar do pomar, da horta, das flores, das galinhas, colher ovos, fazer comida mineira no fogão a lenha, entregar almoço na casa do velho Geraldo, nada disso fará mais parte da rotina.

“A cabeça não está boa. O meu irmão continua desaparecido. Então a gente fica sem dormir”, fala Vera. Na madrugada de sábado, às 2h, quando estavam pegando no sono, tocou o telefone no quarto: “chegou doação, venham receber”, dizia a voz do outro lado da linha. Ao chegarem ao lobby do hotel, a doação que restava era uma embalagem com garrafas de água de meio litro.

Outras doações chegaram em horários mais adequados. A felicidade de Vera e Geraldo foi ter conseguido pares de tênis. Eles pretendem em breve começar a caminhar em volta do hotel. “Não dá para ficar aqui o tempo todo”.

Do futuro, ainda não sabem nada. “Agora, todos os esforços tem que ser em Brumadinho. A gente fica esperando aqui”, fala Geraldo.

E depois? “A gente espera um local para morar e a mobília da casa, já que perdemos tudo. E eu acredito que é só isso, porque o valor emocional do que a gente perdeu nunca vai ser recuperado”, diz Geraldo. “Mas, pelo menos, a gente vai poder sair desse quarto. Ter um lugar com um pouco mais de liberdade. E levar a Nilza”, fala Vera. “O problema é que já estamos velhos. Não sei se vai dar tempo de recuperar o que perdemos.”

Da FSP