O Brasil vai regredir 30 anos
O “desenho da equipa governativa” do Presidente Bolsonaro mostra “a presença de um esforço para dissipar ou eliminar as marcas da modernidade cultural e desconstruir” tudo o que surgiu de bom com a aprovação da Constituição de 1988. O tempo em que o Brasil “viveu os momentos de maior liberdade política e cultural” está em risco de se perder, diz Renato Lessa, professor de Filosofia Política e ex-diretor da Biblioteca Nacional do Brasil, numa longa entrevista ao Expresso. Um texto que deve ler no dia em que doze chefes de Estado e de Governo assistem à posse de Jair Bolsonaro, em Brasília. Marcelo Rebelo de Sousa é o único PR de um país da União Europeia que está presente.
O balanço é de grande confusão e desgaste precoce. Nunca antes uma equipa de transição exibiu tantos sinais de inconsistência e despreparo, tratados com benevolência pela imprensa brasileira. Uma imprensa tão sensível na arte de detecção de escândalos à esquerda, mostra-se prudente e comedida, diante das alarvidades cometidas e prometidas pela futura equipa de governo. O presidente eleito age como elemento de radicalização e tensão, proferindo ameaças habituais. As vítimas mais recentes foram as reservas indígenas, cujos limites Bolsonaro declarou pretender reduzir. Chamado às falas por gente do ramo, aprendeu que a intenção é inviável, por força de cláusula pétrea constitucional, o que o fez recuar do propósito inicial, não sem antes delegar a um dos lideres mais duros e conservadores do chamado “agro-negócio” – antigamente dizíamos “latifúndio”- a gestão da política indigenista.
Acha que a equipa governamental de Bolsonaro pode ficar refém de determinados interesses?
O desenho do Governo, aos poucos, indica a configuração de alguns núcleos: o da gestão económica, controlado pelo economista e financista ultra-liberal Paulo Guedes, um leninista de mercado; o da Justiça e Segurança pública, controlado pelo ex-juiz Sergio Moro, que dá sequência à sua carreira política, agora no âmbito do Poder Executivo; e o núcleo militar, composto em sua maioria por generais na reserva que ocuparão pastas diretamente ligadas ao Presidente eleito, e também as da Defesa, Ciencia e Tecnologia. Resta ainda um quarto núcleo mais claramente ideológico, dotado da interessante missão de eliminar o “viés ideológico” da vida brasileira, nas esferas da Educação, dos costumes e das Relações Exteriores. Esse último sector recebe do futuro presidente – e de seus filhos – estímulo diário, no sentido de cada vez maior radicalização.
Há risco de retrocesso?
O desenho geral da equipa indica a presença de um esforço para dissipar – ou mesmo eliminar – as marcas da modernidade cultural, fixadas no país a partir do início do século passado, com o Movimento Modernista. E particular, trata-se de “desconstruir” os efeitos dos últimos trinta anos – a partir da [aprovação da] Constituição de 1988 –, nos quais o país viveu seus momentos de maior liberdade política e cultural. A par disso, promete-se a desmontagem dos mecanismos de proteção social. E o que se avizinha é a aplicação de um experimento de liberalismo económico à outrance.
Alguns dos nomes indigitados para serem ministros não coincidem com aqueles que tinham sido mencionados, nem com o que seria expectável. Isto tem significado político, ou revela que Bolsonaro nomeou quem aceitou o cargo? Que sectores estão mais em risco?
Há coincidências e não coincidências, mas não dá para extrair consequências significativas. Julgo que todos os sectores [de atividade] estão em risco. A gestão da economia foi delegada numa equipa que é composta por operadores de mercado, e gente que veio do mundo a negócios. Confabulam a respeito das reformas que julgam necessárias, como se não houvesse sociedade e política. São marxistas ortodoxos de direita, para os quais a economia – leia-se: os circuitos financeiros – tudo determina em última instância, e que na verdade é tomada como a única instância.
Como disse, julgo que todos os setores estão sob risco. Destaco quatro: a área da Educação promete ser um dos lugares mais destacados para a guerra cultural, contra a suposta “hegemonia marxista” e a “ideologia cientificista”; no campo ambiental, o futuro Governo acena com a possibilidade de abandonar os Acordos de Paris, e eliminar os controles ambientais sobre empreendimentos que geram impactos fortes sobre o meio ambiente, além da desmontagem dos mecanismos de fiscalização; no campo das Relações Exteriores, um alinhamento incondicional à agenda Trump e uma orientação agressiva, em particular contra Cuba e Venezuela, com implicações imprevisíveis, ao mesmo tempo em que o vínculo com o Mercosul passa a ser visto como não prioritário.
Nesse campo diplomático, o que se avizinha é uma reorientação de cunho dogmático, pela qual o Brasil deixará de se apresentar ao mundo como mediador de conflitos – somos um dos poucos países que mantém relações diplomáticas com todos os demais – para se converter em um campeão ideológico, de uma nova coalizão internacional cristã, tal como quer o futuro ministro das Relações Exteriores [diplomata Ernesto Araújo].
Vão existir mais conflitos sociais?
No campo do conflito social, teremos a emergência de um tratamento predominantemente securitário, com emprego duro e crescente de força policial, e controle judiciário e penal dos líderes e dissidentes.
As liberdades fundamentais podem estar ameaçadas a partir da tomada de posse de Bolsonaro?
As liberdades fundamentais já se encontravam ameaçadas, antes da posse. O Poder Judiciário, assim como as forças policiais, sãp maciçamente conservadores, ressalvando a presença de um núcleo liberal que poderá opor alguma resistência às inclinações iliberais do Presidente. É visível a satisfação dos aparelhos policiais – federais e estaduais – com a vitória de Bolsonaro. A polícia no Brasil é de direita e, em medida não desprezível, refratária à noção civilizatória de que deve ser controlada e submetida aos ditames do Estado de Direito. O termo “direita”, no léxico político do português brasileiro, nada tem a ver com o uso do termo em Portugal. Em Portugal, julgo ser impensável que um político da direita declare publicamente que pretende enviar militantes e políticos de partidos de esquerda para o Tarrafal.
Pois bem, é o que Bolsonaro prometeu na semana em que foi eleito: enviar a “esquerdalha” para a Ponta da Praia, local de sevícias de presos políticos, durante a ditadura militar brasileira.
Quer isso dizer que a linguagem do novo Presidente pode incendiar os seus apoiantes mais radicais?
Mesmo que as políticas do regime bolsonarista venham a ser limitadas pelos arranjos institucionais vigentes e pelas normas constitucionais, seus propósitos permanecerão na linguagem dos seus agentes, dando azo à ação direta e “orientando” o comportamento dos agentes públicos e atores sociais no terreno. Um exemplo: o ataque de Bolsonaro à fiscalização dos órgãos de Meio Ambiente sobre atividades de desmatamento tem “animado” madeireiros na Amazonia a hostilizar e ameaçar fisicamente fiscais ambientais, alguns dos quais tem sido obrigados a abandonar suas atividades legais. Se isso não for um ataque – além do ambiente – aos direitos fundamentais, não sei mais o que são tais entidades…
E o que diz de Moro como ministro da Justiça?
Sergio Moro terá no Governo Bolsonaro uma concentração de poderes inédita na história política brasileira. Além do controle da Polícia Federal, terá em mãos os órgãos de controle de toda a circulação monetária e financeira do país, antes situada no âmbito do Ministério da Fazenda. Os órgãos de imprensa e as redes de televisão, em suas coberturas diárias, destacam casos de escândalos de corrupção, além de iniciativas punitivas do Ministério Público e operações da Polícia Federal. Há uma evidente semeadura de expectativas por ações punitivas duras. Julgo que já na primeira semana de Governo, uma enxurrada de prisões e de operações será deflagrada, a ocupar a atenção dos brasileiros recém – saídos da esbórnia das festas de Ano Novo e já à espera dos eflúvios do Carnaval.
Como define o 38º Presidente do Brasil?
Bolsonaro, ao contrário dos antibióticos de utilização vasta, pode ser definido como um veneno de amplo espectro. Ele é o desaguadouro – e o elemento de estímulo – de várias vertentes anti-liberais e socialmente regressivas, presentes na vida brasileira. A extensão dos danos que imporá ao país dependerá de suas capacidades de gestão, que não parecem ser extraordinárias. Dependerá, ainda e com certeza, da reação dos brasileiros, cuja maioria não o escolheu como seu presidente.
Do Expresso PT