Pesquisa liga acesso facilitado a armas a suicídios e acidentes
Ainda que a intenção de quem compra uma arma de fogo seja proteger a família, evidências científicas sugerem que o resultado pode ser o contrário.
Estudos apontam que a presença de armas em uma casa está estatisticamente vinculada a riscos mais do que a possíveis benefícios, podendo elevar as chances de suicídios, de acidentes fatais com crianças e de uma mulher ser morta por um parceiro violento.
Por outro lado, a presença de armas pode potencialmente dissuadir criminosos de invadirem um lugar onde podem ser recebidos com tiros.
“O argumento que se faz a favor das armas é o da dissuasão do criminoso. Ele é plausível, mas falacioso porque se aplica a latrocínios, que representam uma parcela pequena do total de homicídios no Brasil”, argumenta o economista Rodrigo Soares, pesquisador da área de segurança pública e professor da Universidade Columbia (EUA).
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, apenas 3,6% dos homicídios ocorreram em roubos seguidos de morte.
Para Soares, neste contexto, mesmo que seja teoricamente válido, o benefício da dissuasão da criminalidade violenta não tem como ser relevante.
“E, por outro lado, com mais armas, qualquer interação tem maior probabilidade de acabar em fatalidade, seja uma briga de trânsito, uma discussão familiar que se tornou violenta ou um desentendimento de bar.”
Quando circunscrita ao ambiente doméstico, dezenas de estudos já apontaram para uma relação positiva entre o acesso de armas e a ocorrência de suicídios, especialmente entre jovens.
Segundo pesquisa da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, descartados todos os demais fatores de risco para suicídio, tais como doenças psiquiátricas, pobreza, desemprego ou dependência química, a chance de alguém se matar é maior numa residência com um revólver no cofre ou no armário.
Como tirar a própria vida é, em muitos casos, um ato impulsivo, o fato de haver uma arma de fogo disponível satisfaz esse ímpeto sem que haja tempo para ponderações.
Uma dessas pesquisas acompanhou o caso de 30 norte-americanos que atiraram em si com a intenção de se matar, mas foram salvos numa emergência hospitalar. Nenhum deles havia escrito uma carta ou bilhete, o que indica falta de planejamento. E, dois anos depois do ocorrido, nenhum havia tentado cometer suicídio novamente.
Outros estudos que acompanharam sobreviventes de tentativas de suicídios apontaram que apenas 10% retomaram este projeto.
No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam que os suicídios aumentaram 18% entre 2010 e 2016 e que pouco mais de 8% deles são cometidos com arma de fogo.
A ocorrência de acidentes letais com armas entre crianças de até 14 anos é objeto de outra série de estudos norte-americanos que relacionam armas e o risco de morte.
“Crianças que vivem em domicílios onde há armas estão sob maior risco de se matarem, de serem vítimas ou agentes de um acidente letal e, ainda, de serem mortas durante uma briga violenta entre familiares”, afirma o professor David Hemenway, diretor do Centro de Pesquisa em Controle de Ferimentos de Harvard e autor de estudos sobre armas e mortes violentas.
Estudo de 2016 que comparou dados norte-americanos com os dos demais países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) apontou que 91% das mortes de crianças e jovens por armas de fogo em países desenvolvidos ocorre nos Estados Unidos.
Com isso, uma criança nos EUA teria 11 vezes mais chances de ser morta acidentalmente por arma de fogo que nos demais países desenvolvidos do mundo.
Outra pesquisa, de 2017, analisou as mortes de crianças e adolescentes por armas de fogo nos EUA entre 2002 e 2014 e apontou que 85% delas ocorreram em casa. Em 60% dos casos envolvendo crianças de 0 a 12 anos, o acidente fatal foi fruto de brincadeiras com a arma —na maioria absoluta dos casos, uma pistola (cerca de 80% das ocorrências).
O caso típico envolve meninos alvejados por irmãos mais velhos ou por amigos. Uma tragédia que, além de custar uma vida inocente tende a condenar o agente do disparo acidental a maior risco de distúrbios mentais, estresse pós-traumático e alcoolismo, segundo Hemenway.
Em média, 1.300 crianças foram mortas por armas de fogo nos EUA nestes anos e quase 6.000 foram feridas em acidentes.
A presença de armas em casa tem ainda correlação com a maior incidência de ameaça contra mulheres e de feminicídio.
Pesquisa de 2003 sobre fatores de risco de morte em relações abusivas indicou que mulheres neste tipo de relacionamento que vivem em residências com armas têm cinco vezes mais chance de serem mortas que aquelas em casas sem armas de fogo.
Existia acesso fácil a armas em 65% dos casos de lesões fatais em mulheres provocadas por parceiros contra 25% dos casos de lesões não fatais. O mesmo estudo apontou que o acesso a armas de fogo pelas mulheres não representou um fator protetivo.
Boa parte dos estudos sobre a relação entre armas e mortes violentas é produzida por pesquisadores nos Estados Unidos a partir de dados daquele país, onde a indústria armamentista é forte e o lobby das armas, poderoso.
Depois que foram publicados os primeiros estudos consistentes sobre a relação entre armas em casa e a incidência de suicídios e homicídios, a Associação Nacional do Rifle (NRA na sigla em inglês) fez pressão para que uma emenda fosse aprovada proibindo o uso de verbas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças para o financiamento de pesquisas que sugerissem ou promovessem o controle de armas.
A emenda foi aprovada em 1996. Em 2016, mais de 100 associações médicas assinaram carta enviada ao Congresso dos EUA pedindo que a emenda seja suspensa.
“Se a posse de armas resolvesse o crime, os EUA teriam menos crime que a Europa”, questiona o cientista político Benjamin Lessing, professor da Universidade de Chicago e especialista em crime organizado na América Latina. “E, se as armas não protegem os norte-americanos de criminosos individuais e ‘mass-shooters’, como vão proteger brasileiros de criminosos faccionalizados com armas de guerra?”
Da FSP