Propostas de Moro vão por água a baixo com acesso às armas facilitado
Reduzir a criminalidade é o objetivo de qualquer política de segurança pública, seja qual for o governo. Os caminhos para isso é que são elas. Se existe consenso na intenção, a estratégia para alcançá-la é tema de intermináveis debates.
As propostas esboçadas pelo novo ministro da Justiça, Sergio Moro, não fogem à regra e já amealham elogios e críticas dos mais diversos setores. O ex-juiz parece que tratará de quatro questões básicas: aprimoramento das investigações, aceleração do processo penal, retomada do controle das prisões e redução da taxa de homicídios. Ao expor seus planos, acerta em algumas análises. As proposições, no entanto, merecem atenção crítica.
O primeiro tema são as investigações policiais e sua baixa efetividade. Basta lembrar que em alguns estados nem 10% dos homicídios são elucidados. O número de inquéritos sobre crimes sem mortes encerrados com identificação dos autores é ainda menor.
A solução passa por mais investimento e maior integração policial. Hoje investigações não terminam por falta de técnicos e peritos e porque não se conversa. A Polícia Federal pouco fala com as polícias dos estados, que não dialogam com autoridades prisionais, rodoviárias e outros órgãos de investigação. Os programas de compartilhamento de dados são pouco usados. Há quem sustente que foi nas sombras dessa ausência de informações que surgiram e se reproduziram organizações criminosas como o PCC.
Por isso, a iniciativa de aprimorar a cooperação policial é correta. Será necessário diálogo e política, porque parte do plano exige participação dos governadores, nem sempre aliados ou dispostos a dividir dados e poder. Mas não é suficiente. É preciso ir além. O ministério deve se esforçar para integrar juízes, promotores, cartórios e outros órgãos, superando disputas corporativas para criar um sistema que facilite a identificação de pessoas e bens e para esclarecer fatos e crimes.
Outro tema destacado foi a morosidade do processo penal. Correta a análise do ministro sobre a inutilidade da elevação de penas para o combate ao crime se uma decisão judicial demora anos para ser tomada. O tamanho do castigo é irrelevante se ele nunca for aplicado.
Uma das apostas do ministro para enfrentar a lentidão é o plea bargain, a possibilidade de acordos penais em que os acusados criminais oferecem aos promotores a confissão de crimes em troca de penas menores, abrindo mão da defesa e abreviando processos. Como um cobertor curto, a ideia aparentemente resolve o problema do tempo processual, mas cria outros maiores. Nos Estados Unidos esse sistema é alvo de intensas críticas por levar muitos inocentes a aceitar as penas propostas diante dos custos financeiros e de reputação que um processo envolve.
No Brasil, um instituto que permita a renúncia de garantias sem o fortalecimento da Defensoria Pública, e sem um controle judicial efetivo dos acordos, levará a um encarceramento em massa que apenas agravará a crise do sistema prisional. É preciso sopesar as consequências de cada caso, sob o risco de retrocesso.
Se a ideia é enfrentar a morosidade, há outros meios. É notório que os processos penais têm pontos mortos, gargalos que atrasam seu andamento. Em geral isso ocorre quando o juiz aguarda documentos, o compartilhamento de provas, a remessa de dados, a busca por endereços ou a intimação de testemunhas. São entraves burocráticos que podem ser superados com a incorporação de tecnologias simples, que permitam trocas rápidas de informações, comunicações on-line e oitiva de testemunhas por videoconferência. Tais instrumentos, largamente usados pelo juiz Sergio Moro na Lava Jato, poderiam ser incentivados pelo ministro Sergio Moro no Executivo, com o intercâmbio de experiências e convênios com o Poder Judiciário. Parte do problema seria resolvido sem os riscos do plea bargain.
O terceiro eixo é a política carcerária. Não é preciso muita perspicácia para perceber o caos do sistema prisional brasileiro, viveiro da criminalidade organizada.
Nesse ponto, o ministro defende que o Estado recobre o controle das prisões. A intenção é boa, mas é ilusória a pretensão de fazê-lo apenas com a construção de penitenciárias e o controle do contato de alguns presos com o mundo exterior. Por mais que se gaste, jamais o Estado terá controle de um sistema em que se contam 730 mil presos, sem falar dos milhares de mandados de prisão a cumprir.
A única forma de retomar as prisões é reduzir o número de presos. Há maneiras de fazer isso. Uma delas é fortalecer e ampliar o uso de penas alternativas. Outra é reformar a lei de drogas, uma vez que o maior número de encarcerados é acusado ou foi condenado por tráfico de entorpecentes. Descriminalizar o uso, fixar quantidades que permitam distinguir o usuário do traficante e prever penas distintas para o grande e o pequeno tráfico parece um bom começo para tirar do sistema aqueles flagrados com pequenas quantidades de drogas. Que são muitos, diga-se de passagem.
Com menos encarceramento, menor o número de soldados do crime organizado, mais restrita sua área de atuação e mais frágil sua existência. Mata-se o inimigo por inanição.
Por fim, a proposta de reduzir a taxa de homicídios é inconteste. A questão é como alcançar tal objetivo. A integração das polícias, a efetividade das investigações, o enfraquecimento das organizações criminosas podem ser medidas relevantes. Mas serão absolutamente ineficazes se forem flexibilizadas as regras do desarmamento, em especial em regiões com altos índices de violência, como propôs o novo presidente da República. Segundo pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada 1% de armas de fogo em circulação, os homicídios aumentam em 2%. O mesmo instituto reconheceu que há uma relação direta entre redução de armas de fogo e diminuição de mortes.
A ampliação do acesso às armas de fogo aumentará a violência. Às mortes relacionadas ao crime organizado serão somadas as passionais, de trânsito, de violência doméstica, escolares, enfim, todas aquelas evitadas apenas e tão somente porque não se vende uma arma a cada esquina. Vale recordar que os Estados Unidos, modelo de inspiração do armamento, têm a maior taxa de homicídios por arma de fogo do mundo.
Não são pequenos os problemas a enfrentar. Mas também não são poucos os estudos, análises, experiências e propostas à disposição. É preciso ter consciência de que as coisas não se resolvem de forma simples ou com passes de mágica e que projetos nesse setor demandam profunda cautela. A segurança pública não é dada a experimentos, uma vez que seu êxito ou fracasso se mede em vidas preservadas ou perdidas.
Da Época