Secretária da Família prega preconceito disfarçado de aceitação

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Foi ao classificar a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação de “aborto jurídico”, em agosto do ano passado, que a advogada Angela Gandra Martins Silva chamou a atenção da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos).

Ela representava a União dos Juristas Católicos de São Paulo no debate que o STF (Supremo Tribunal Federal) e agora foi anunciada como a titular da Secretaria Nacional da Família.

Em entrevista à Folha, a filha do jurista Ives Gandra Martins disse que é errado rotular pessoas a partir de convicções e que não é a religiosidade dela ou da ministra, que é pastora evangélica, que irá impedir o diálogo com grupos como o LGBTI+.

“Não trabalho ‘porque sou católica faço isso ou aquilo”. A fé não impede a convivência, o pluralismo. Neste sentido que estamos trabalhando. Não é a partir de uma convicção religiosa, mas a partir da nossa cidadania, do nosso profissionalismo e com uma abertura muito grande ao diálogo e ao pluralismo”, afirmou.

Angela disse que sua secretaria não vai considerar como família apenas o núcleo formado por homem e mulher e, em relação ao aborto, afirmou que a pasta vai “celebrar a vida”.

Ela também afirmou que homens e mulheres têm os mesmos direitos, apesar da “diferença natural”.

Como se deu o convite? Defendemos em agosto a ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] na qual se discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana] no Supremo em audiência pública. A ministra Damares é muito pró-vida e, vendo a minha defesa, provavelmente se interessou e me chamou. Achei que era um serviço para o Brasil. Fui chamada para a transição e trabalhei nesta proposta de uma secretaria que permitisse a projeção da família no Brasil.

Qual vai ser a função da secretaria? É um foco na projeção da família em termos sociais, econômicos e de sustentabilidade de relações, o fortalecimento de relações dentro da família.

A secretaria vai trabalhar com que definição de família? A gente não tem uma definição em si. A gente vai trabalhar com o fortalecimento de relações na família.

Mas vai entender família só como aquela formada por homem e mulher? Não, na sustentabilidade de relações humanas para que as pessoas possam ter segurança e crescerem.

Logo que o presidente Jair Bolsonaro venceu a eleição, pessoas LGBT anteciparam seus casamentos com medo de que esta possibilidade fosse revogada. Existe algum risco de que isso aconteça? Pelo que percebo, o governo é bastante dialógico. Firme em convicções e valores, mas dialógico. Vai haver um acolhimento. Foi muito bonito o acolhimento, por exemplo, que eu presenciei da ministra Damares com a comunidade LGBT.

Em relação à questão do aborto, o STF não julgou ainda. Como sua secretaria vai tratar este tema? Gostei muito quando conheci mais de perto a ministra Damares que ela falou ‘nosso ministério é da alegria e da vida’. Então, vamos celebrar a vida. A gente vai acolher a vida não de um jeito contra o aborto, mas pela vida.

Mas o ministério e a secretaria, mais especificamente, vão defender alguma proposta no Legislativo para tratar deste tema ou vão esperar o STF? Coerentemente, este é um ministério que defende os direitos humanos. A vida é um direito inviolável segundo a nossa Constituição. Vamos, naturalmente, por este caminho.

Mas já existe alguma intenção de proposta a ser encaminhada? Não. Estamos começando.

Logo que a ministra Damares foi indicada houve uma polêmica muito grande por ela ser evangélica. A senhora integra um grupo de juristas católicos. Qual vai ser a interferência da religião nesta pasta? Compus este grupo de juristas, mas não trabalho ‘porque sou católica faço isso ou aquilo”. Trabalho como professora, filósofa. A fé não impede a convivência, o pluralismo. Neste sentido que estamos trabalhando. Não é a partir de uma convicção religiosa, mas a partir da nossa cidadania, do nosso profissionalismo e com uma abertura muito grande ao diálogo e ao pluralismo.

Não vai haver interferência? Não vejo. Acho que existe uma boa laicidade. Nosso governo, o próprio presidente [diz] ‘Deus acima de todos’. Evidentemente essa religiosidade pode ter Deus também, como a nossa própria Constituição fala no preambulo ‘sob a proteção de Deus’. Mas isso não impede que haja, acho até facilita, um diálogo de respeito à maneira de pensar das pessoas.

O irmão da senhora [Ives Gandra Filho] foi cotado para ministro do STF, mas, por integrar a Opus Dei [prelazia da Igreja Católica com viés conservador], foi tido como uma pessoa muito conservadora, acabou não havendo esta indicação. O que a senhora acha deste tipo de conduta? Em relação a meu irmão não me pronuncio. O que acho muito errado é a gente rotular pessoas e rotular a partir de convicções. Cada pessoa tem sua maneira de pensar e a gente deveria aprender a escutar de forma mais aberta. E isso estou vendo, de fato, no nosso ministério. Há muitas convicções, mas há uma abertura muito grande para a somatória de luzes e criatividade que pode vir de cada ser humano independente da sua própria convicção.

O que eventuais críticos podem esperar de sua secretaria? Não estou projetando negativamente. Estou pensando que a gente vai dialogar. A gente pode ter projetos a partir do que a sociedade desejar também. E vejo o ministério bastante dialógico neste sentido. Não vou partir do negativo. Quero me abrir ao positivo e à somatória de luzes que a sociedade pode dar em prol dela mesma porque todo mundo tem família. De um jeito ou de outro, tem família.

A ministra Damares já deu declarações polêmicas como ‘meninas têm que ser tratadas como princesas e meninos como príncipe’. Qual o posicionamento da senhora em relação ao papel na família? Acho que a mulher tem que simplesmente ser mulher e respeitada como mulher. Quero potencializar, até como antropóloga, como filósofa, a mulher a partir do ser mulher.

Mas o que é ser mulher? Isso aí é uma aula de antropologia, acho que não cabe agora. Mas eu penso a partir da realidade, da natureza de uma mulher.

Mas o ser mulher não a coloca num papel inferior ao do homem, certo? Muito pelo contrário. O ser humano, por ser ser humano, tem que ser respeitado em toda a sua integralidade e integridade. Penso que a mulher e o homem têm os mesmos direitos, ainda que tenham uma diferença natural que é óbvia, é só olhar.

Da FSP