Sr. Jair Messias, nossa bandeira ainda será vermelha
Leia a coluna de Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
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Nossa bandeira será vermelha
Um fantasma assombra o Brasil, o fantasma da bandeira vermelha. O lema “a nossa bandeira jamais será vermelha” não esperou o sr. Jair Messias para despertar do pântano gélido dos medos da República.
Já o sr. Collor terminava seus discursos de punho cerrado garantindo que ele estava lá para que o verde, o amarelo, o azul e o branco continuassem a se inscrever nos céus da nossa pátria. Obrigado, Collor, a história lhe agradece. Como todos sabemos, foi realmente um grande trabalho.
Mas é fato que o medo da bandeira vermelha tem origens que não escondem suas verdadeiras razões. Ela remonta à Revolução Francesa ou, para ser mais exato, a uma lei de 21 de outubro de 1789 autorizando as municipalidades a hastear a bandeira vermelha para indicar que as massas deveriam se dispersar diante do que seria uma ameaça à “ordem social”.
Ou seja, se a bandeira vermelha aparecesse, isso significava que as forças do governo tinham autorização para atirar contra a população, já que a denominada “ordem” estava em risco.
Não será por outra razão que rapidamente a revolução verá massas na rua retomando para si a bandeira vermelha, como se fosse o caso de mostrar ao governo onde estava a verdadeira soberania, quem era a verdadeira força soberana.
Esse gesto político maior de retirar do poder seus signos, de inverter seus significados, estará presente nas revoluções de 1830 e, principalmente, na de 1848.
Nesses casos, a bandeira vermelha aparece claramente significando a presença da força popular em sua aspiração à justiça e à igualdade transnacional.
Ela indicava não uma pátria, não uma nação, mas a existência dos que não tinham pátria nem território, porque lutavam por uma existência política por vir, existência que eles nunca tiveram, que fora continuamente sequestrada por quem realmente comandava o Estado.
Em 1848, a massa insurgente em Paris levanta a bandeira vermelha a fim de indicar que seu país ainda estava por ser construído e que se fundaria na solidariedade sem fronteiras entre aqueles que até então não tiveram nada.
As vozes da burguesia, o poeta-político Lamartine à frente, falaram de todos os medos que ouvimos até hoje: da guerra civil, do fracionamento da nação, da partidarização, do sangue e o da violência.
Enquanto essas palavras de concórdia eram ditas, a polícia matava e as prisões eram preenchidas até o teto. Como se vê, a estratégia é antiga. Foi assim que a bandeira azul-branca-vermelha da república francesa permaneceu hasteada.
Isso até 1871, à ocasião da Comuna de Paris, quando a bandeira vermelha é assumida pelos revoltosos vitoriosos e aparece, enfim, como a indicação de uma sociedade cujo poder está agora nas mãos daqueles que eram os alvos da violência do Estado, daqueles que ousaram expor seu descontentamento e revolta contra as forças da perpetuação e da conservação.
Ela fora hasteada como a representação de uma luta de gerações e, a partir de então, continuaria a ser hasteada durante todo o século 20 para indicar a perpetuação dessas lutas.
Hoje, em 2019, o medo da bandeira vermelha ainda está na pauta do dia —e isso diz muito a respeito de como o poder não aprendeu nada nesses últimos 200 anos. Não é contra o uso da bandeira vermelha feito por Estados burocráticos totalitários que ele se volta. É contra o seu significado originário e seu sinal de insubmissão.
Tanto é assim que o poder continua a fazer os mesmos discursos, a levantar os mesmos espantalhos, tal como se estivéssemos de volta ao século 19.
Essa repetição não é um acaso. Ela simplesmente indica que, apesar das diferenças evidentes de contexto e de condições, há um elemento que não cessa de não se inscrever, que não cessa de repetir, indicando a natureza falsa da vida social que impomos às classes mais vulneráveis e desfavorecidas.
Por isso, sr. Jair Messias, nossa bandeira ainda será vermelha.
Da FSP