Testemunhas apontaram ex-policial do Bope como assassino de Marielle
Foi nas fileiras do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar que o principal suspeito de assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes se aperfeiçoou nas técnicas de matar pessoas. Expulso da PM por envolvimento com um dos principais clãs da máfia do jogo do bicho no Rio, o ex-capitão do Bope, então, passou a trabalhar exclusivamente como mercenário de bicheiros, políticos e quem mais estivesse disposto a pagar por seus serviços. Sua especialidade: matar.
O Intercept Brasil teve acesso ao inquérito que a Justiça proibiu que a Rede Globo divulgasse. Nele, ao menos seis testemunhas citam o policial como assassino da vereadora e do motorista. Por considerar que a divulgação do nome do suspeito poderia atrapalhar as investigações, o Intercept, que leu o documento por intermédio de uma fonte envolvida na investigação e que pediu para não ser revelada, decidiu mantê-lo anônimo.
Seu grupo paramilitar tem ao menos outros dois ex-caveiras, homens altamente treinados – capacitados numa unidade de elite mantida com nossos impostos –, que desvirtuaram o aprendizado em troca de dinheiro. Um deles é também ex-oficial, parceiro dos tempos de academia, conforme o inquérito da Polícia Civil. Ambos tiveram participação no assassinato de Marielle, de acordo com o inquérito. O Bope foi criado para atuar em resgate de reféns e salvar vidas, mas se tornou uma ampla tropa de guerra urbana e, não é segredo para ninguém, alguns de seus policiais trabalham para o crime organizado.
O ex-capitão apontado pelas testemunhas como autor dos disparos já mantinha ligações umbilicais com a contravenção quando ingressou na Academia Dom João VI, o centro de formação de oficiais da Polícia Militar, de acordo com o inquérito. Posteriormente, fez o curso do Bope. Há tempos, a polícia sabe que os bicheiros recrutam e formam oficiais que paralelamente atuam na sua proteção. O ex-capitão entrou para o crime organizado dessa forma, mas a hipótese de envolvimento de bicheiros no crime contra Marielle e Anderson é praticamente descartada pela Divisão de Homicídios. Milicianos são os principais suspeitos de serem os mandantes do crime.
O Intercept Brasil já tinha antecipado em maio do ano passado as suspeitas de o assassino ter ligações com o Bope, além das possíveis armas usadas no crime – justamente aquelas com as quais os atiradores de elite estão mais familiarizados.
Agora, a DH chegou ao nome do suspeito. Primeiro, por meio de depoimentos, depois, ao revisar inquéritos relacionados às execuções de dois ex-sargentos da PM: Geraldo Antônio Pereira e Marcos Vieira de Souza – o Falcon, ex-presidente da escola de samba Portela e, à época, candidato a vereador.
Pereira e Falcon foram executados, respectivamente, em maio e setembro de 2016. Ambos já tinham sido investigados por envolvimento com milícias e a máfia dos jogos. No caso de Falcon, testemunhas ouvidas pela DH na ocasião relataram que quatro homens encapuzados portando fuzis foram responsáveis pela execução. O grupo chegou ao seu comitê eleitoral em um Gol prata. Três deles saíram do veículo, dois entraram no comitê. Falcon foi surpreendido sem sua escolta de segurança e morto a tiros que atingiram o peito e a cabeça. Após o crime, os bandidos fugiram no mesmo carro. Passados dois anos da execução, a DH não conseguiu identificar os assassinos e a motivação por trás do crime.
Pereira também foi assassinado a tiros de fuzil, e os matadores usaram veículos com placas clonadas e não deixaram rastros, dinâmica muito parecida com o atentado contra Marielle e Anderson.
Os investigadores então foram a campo e concentraram esforços na região do Itanhangá, sobretudo em Rio das Pedras, onde o ex-capitão lidera um grupo de mercenários. Depois de rodarem a zona atrás de câmeras de segurança, eles conseguiram finalmente imagens do Chevrolet Cobalt usado pelos matadores da vereadora e de seu motorista. O carro foi abastecido em um posto de gasolina na área, na véspera do crime.
O bando age com sofisticação e, além de empregar placas clonadas, usa o que eles chamam de “armas fantasmas” para eliminar seus alvos, de acordo com o inquérito.
A estratégia é simples. Policiais corruptos apreendem armas em operações, geralmente contra traficantes. É um espólio de guerra. A maioria das armas são entregues ao estado depois de apreendidas, como requer o procedimento. Mas as melhores não são recolhidas ao depósito da Polícia Civil – são ilegalmente desviadas para a formação dos arsenais particulares dos maus policiais. Algumas delas seriam guardadas até mesmo nos paióis dos próprios batalhões onde eles atuam.
O tamanho desses arsenais é desconhecido, já que são compostos por armas sem apreensão registrada pela polícia e, em grande parte, importadas ilegalmente pelo crime. Foi justamente a suspeita do uso de uma arma fantasma nos assassinatos de Marielle e Anderson que levou a DH a solicitar perícia em submetralhadoras 9 mm recolhidas em unidades da PM, entre elas o Bope.
Sem provas cabais que liguem diretamente o bando do ex-capitão caveira à execução da vereadora e de seu motorista, a DH passou a revisar os casos de homicídios nos quais o grupo era o principal suspeito. Além das mortes dos ex-sargentos Pereira e Falcon, os investigadores também retornaram aos inquéritos sobre o assassinato de José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, em setembro de 2011, e de Myro Garcia, em abril de 2017. Eles eram, respectivamente, genro e filho do banqueiro do jogo do bicho Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, morto em setembro de 2004.
A estratégia de tentar encontrar pontos de ligação entre os suspeitos de envolvimento nas mortes de Marielle e Anderson em antigos inquéritos levou a polícia e o Ministério Público a abrirem, em outubro passado, uma investigação separada que apura o envolvimento de milicianos na grilagem de terras e exploração de saibro na zona oeste.
A ação serviu de base ao pedido de quebra dos sigilos bancário, telefônico e de dados do vereador Marcello Siciliano, apontado por uma testemunha do inquérito de Marielle como mandante do crime. O processo resultou ainda na realização de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador do PHS.
Num trecho da ação, os promotores ressaltam que Marcello Siciliano participou de mais de 80 transações imobiliárias envolvendo a cessão de terras em áreas dominadas por grupos paramilitares nos últimos dez anos. O documento cita também uma negociação entre Siciliano e um empresário envolvido na exploração de saibro cujo irmão foi preso sob acusação de ser miliciano. O vereador negou envolvimento com paramilitares e afirmou que as negociações imobiliárias foram legais e registradas em cartório. Ele também nega ser o mandante do duplo homicídio. Pela linha de investigação, Marielle seria um entrave aos negócios do grupo, mas a polícia ainda não apresentou provas que sustentem a hipótese.
Hoje, Siciliano é o principal suspeito de ter encomendado o assassinato, em associação com o suposto miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica. O vereador já depôs várias vezes, mas a polícia não o acusou formalmente pelo crime. De acordo com O Globo, um motorista de Curicica, preso por outro homicídio, disse aos investigadores que levou seu chefe para encontrar Siciliano pelo menos quatro vezes, o que contradiz a afirmação dos dois de que mal se conhecem.
Uma testemunha disse à polícia que, em um dos encontros, Siciliano disse a Curicica: “Tem que ver a situação da Marielle. A mulher está me atrapalhando”. Logo depois, o vereador teria dito que “precisamos resolver isso logo”. Segundo essa linha de investigação, assessores de Marielle estavam se alinhando com moradores da zona oeste que buscavam regularização de áreas que seriam do interesse do grupo de Siciliano.
Em 2018, Curicica foi condenado a quatro anos e um mês de prisão por posse ilegal de arma.
Menos de um mês depois do crime, dois homens foram mortos a tiros no Rio. Um trabalhava no gabinete de Siciliano, e outro era um policial aposentado. Os dois teriam ligação com milicianos, e, na época, fontes da polícia disseram ao Intercept que as mortes eram queima de arquivo.
Mentor de Marielle na política, o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, já colocou dúvidas sobre a grilagem de terras como motivação para o assassinato da vereadora. “Eu não vejo a possibilidade da morte da Marielle ter algum vínculo em relação ao nosso trabalho com as milícias”, disse Freixo em dezembro. “Se o secretário diz que a motivação é a questão fundiária ou é a questão das milícias, esta frase tem que ser acompanhada de provas”, afirmou.
Dez meses depois das execuções de Marielle e Anderson, DH e MP parecem, enfim, estar sintonizados e próximos de reunir todas as peças desse intrincado quebra-cabeças. O general Walter Braga Netto, ex-interventor federal na segurança pública do Rio, disse no dia 11 ao jornal O Globo que as investigações sobre a morte de Marielle e Anderson estão adiantadas e que o resultado virá “em breve”.
“Eu poderia ter anunciado quem a gente acha que foi, ou dito ao (general) Richard (Nunes, secretário de Segurança Pública durante a intervenção, para que o fizesse), mas quisemos fazer um trabalho realmente profissional”, afirmou o ex-interventor num evento militar em Brasília.
O encaixe dessa peças, contudo, pode estar nas mãos do governador Wilson Witzel, que recentemente postou um vídeo fazendo flexões no Bope. No ano passado, ele participou de um evento no qual dois candidatos da última eleição exibiram como troféu a placa com nome de Marielle quebrada ao meio.