Trump criou uma crise a partir do nada
Observando a luta pelo financiamento de um muro de fronteira, fico impressionado pela forma como Donald Trump já obteve sucesso em certo sentido. Ele conseguiu criar uma crise a partir do nada, elevar essa emergência fabricada ao nível de atenção nacional, paralisar o governo e talvez até invocar a autoridade bélica e ignorar o Congresso. Ele ainda pode fracassar, mas devemos nos preocupar que um presidente – qualquer um – possa fazer o que Trump fez.
Sejamos claros: não há crise. O número de imigrantes sem documentos nos EUA está em declínio há uma década. O número de pessoas que foram flagradas tentando atravessar a fronteira sul tem estado em declínio há quase 20 anos e é menor do que em 1973.
Como tem sido frequentemente apontado, muito mais pessoas estão entrando legalmente nos EUA e depois prolongando indefinidamente seus vistos do que atravessando ilegalmente a fronteira sul. Mas é importante colocar esses números no contexto.
Quanto ao terrorismo, o Instituto Cato descobriu que, de 1975 a 2017, “zero pessoas foram assassinadas ou feridas em ataques terroristas cometidos por invasores ilegais de fronteira em solo americano”.
Quanto às drogas, o maior perigo vem das substâncias semelhantes ao fentanil e similares do fentanil, que estão no centro da crise dos opiáceos. A maior parte vem da China, seja diretamente enviada para os EUA ou contrabandeada pelo Canadá ou pelo México.
Trump abordou a raiz desse problema ao pressionar o governo chinês a reprimir as exportações de fentanil, uma estratégia muito mais eficaz do que construir uma barreira física ao longo da fronteira mexicana.
Até mesmo a DEA admitiu no ano passado que enquanto a fronteira sul é o canal para a maior parte da heroína que entra nos EUA, a droga normalmente passa por pontos legais de entrada, escondida em carros ou misturada a outros produtos em caminhões. Em outras palavras, um muro pouco faria para estancar o fluxo.
E, no entanto, o poder da presidência é tal que Trump conseguiu colocar esta questão no centro do palco, fechou o governo, forçou as redes de TV a apresentar um discurso alarmista e assustador, e agora talvez invocar poderes de emergência. Isso soa como algo que poderia ser feito pelos presidentes Vladimir Putin ou Recep Tayyip Erdogan, não pelo líder da principal república constitucional do mundo.
Quando o governo dos EUA criou essa sensação de emergência e crise no passado, quase sempre foi para amedrontar as pessoas, expandir os poderes presidenciais e amordaçar a oposição. Desde as Leis sobre Estrangeiros e Sedição à Ameaça Vermelha até alertas sobre o arsenal de Saddam Hussein, os EUA passaram por períodos de paranoia e insensatez.
Olhamos para eles agora e reconhecemos que os problemas não eram tão sérios, o inimigo não era tão forte e os EUA eram na verdade muito mais seguros. As ações tomadas foram quase sempre erros terríveis, muitas vezes com consequências desastrosas no longo prazo.
E, no entanto, os poderes presidenciais continuaram se expandindo. Trump conseguiu transformar as boas notícias em más, a segurança em perigo e, quase sozinho, fabricar uma crise nacional onde não há nenhuma. Todo este episódio destaca um problema que se tornou aparente. O presidente americano tem poderes demais, formais e informais.
Tenho sido defensor de um Executivo forte. Não gosto muito de como o Congresso funciona. Agora percebo que minhas opiniões tinham como premissa que o presidente operaria dentro dos limites das normas e da ética. Creio que uma tarefa urgente é que o Congresso escreva leis que limitem explicitamente e chequem os poderes do presidente. Eu escolheria polarização sobre putinismo sem pensar duas vezes.
Do Estadão