Último povo a ter terra demarcada pode ser primeiro a perdê-la
Na década de 1950 os índios Guató, que habitavam as terras pantaneiras do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e parte da Bolívia, foram declarados extintos pelo Serviço de Proteção ao Índio. Expulsos de seus territórios tradicionais pelo gado dos fazendeiros e pela violência dos jagunços, este povo canoeiro cujos primeiros registros datam do século XVI se dispersou. Foi em 1976 que uma missionária encontrou em uma favela de Corumbá (MS) a artesã Josefina, descendente dos Guató. A partir daí começaram a localizar e mobilizar vários índios da etnia que viviam nas periferias das cidades da região em situação de miséria. Em 26 de abril de 2018, mais de 40 anos após serem redescobertos, a Terra Indígena Baía dos Guató, com seus 20.000 hectares no Mato Grosso, foi homologada pelo então presidente Michel Temer —a única oficializada pelo emedebista. Caso as promessas de Jair Bolsonaro de paralisar as demarcações indígenas se cumpram, os Guató serão o último povo tradicional do país a ter suas terras reconhecidas. E podem, também, ser os primeiros a perdê-las nesta nova gestão.
Além de congelar futuras regularizações de terras indígenas (“Não demarcarei nem um centímetro a mais de terra para índios”, disse o presidente), o Governo Bolsonaro pretende rever demarcações ocorridas nos últimos dez anos em casos onde sejam encontrados indícios de “falha grave”, “erro inadmissível” ou “fraude processual”, informou o secretário especial de Assuntos Fundiários e líder ruralista, Luiz Nabhan Garcia, em entrevista ao jornal O Globo. “Será feito um levantamento amplo e geral de tudo que aconteceu em questões fundiárias no Brasil, seja em reforma agrária, demarcação de terras indígenas e quilombolas”, afirmou. “Se houve alguma falha e se tiver brecha que mostre para Justiça que houve um erro, tudo é possível de anular”, disse.
Os Guató correm grandes riscos de serem as primeiras vítimas desta “revisão”. Em 14 de dezembro, o juiz federal Leão Aparecido Alves, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, suspendeu em decisão liminar a demarcação, usando como justificativa o polêmico critério do marco temporal: o magistrado afirmou que não existem provas da ocupação daquele território pelos Guató em 1988, ano da promulgação da Constituição Federal – o fato é que a maioria já havia sido expulsa, e os que ficaram eram funcionários das fazendas. A ação contra os índios foi movida por produtores locais e pecuaristas. “Os indivíduos que a Funai afirma serem indígenas, na verdade, não são índios, tratando-se de brasileiros comuns, pantaneiros”, disseram os advogados dos fazendeiros em trecho do despacho citado pelo juiz. Os defensores também afirmam que o rio “São Lourenço mudou de curso no início do século XX, o que implicou na identificação equivocada do ‘endereço’ do território indígena Guató”. Questionada pela reportagem, a Advocacia Geral da União, que representa a Funai no processo, afirmou que ainda “aguarda ser intimada para decidir se irá recorrer”. Seguindo critérios da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, o Governo brasileiro determina que a definição de um indígena consiste na autodeclaração, ou seja, na consciência de um povo de sua identidade indígena.
“Sem a terra a cultura guató acaba”, afirma Adílio Guató, 34, nascido e criado na região onde hoje fica a Terra Indígena. “Fomos criados assim, canoeiros. O que sabemos fazer bem é viver no pantanal. Eu não vejo outra forma de sobrevivência se tirar o pessoal lá”, diz. Segundo ele, alguns dos mais novos ainda conseguiriam sobreviver no setor de turismo pantaneiro fora da Terra Indígena, mas os mais velhos “estariam condenados”. Adílio se lembra com remorso das histórias sobre parentes que deixaram a região e foram morar nas periferias das cidades do entorno: “A maior desgraça que aconteceu no nosso povo foi ter conhecido a cidade. Os que foram sem estudo se envolveram com droga, bebida… Só aprenderam o que não presta”.
O congelamento das demarcações de terra prometida por Bolsonaro afetaria 238 processos movidos por dezenas de etnias diferentes, segundo a Funai. O Mato Grosso, região que os Guató originalmente habitavam e onde conseguiram o reconhecimento de seus direitos fundiários é o Estado com mais terras que ficarão sem reconhecimento oficial: são 30 territórios tradicionais reivindicados ainda tramitando. O Mato Grosso do Sul e o Rio Grande do Sul vem em seguida, com 29 e 28 processos que serão sustados, respectivamente. Apenas Sergipe, Piauí, Espírito Santo e Distrito Federal não têm processos para reconhecimento de terras em andamento —o que não significa que não existem demandas fundiárias nos locais, informa a Funai.
Uma das consequências deste congelamento e da eventual revisão de terras já demarcadas pode ser o “aumento na violência contra os povos indígenas”, afirma o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cléber Buzatto. “É um absurdo, é dever do Executivo cumprir o que está na Constituição com relação aos povos indígenas”, disse. Em outubro de 2018 um índio morreu baleado quando o grupo foi cobrar a demarcação de suas terras em uma base da Funai localizada em Colniza (1.065 km de Cuiabá, MT). Ouvido pela Folha, Francisco Arara, do povo Arara, que participou da ação, afirmou que eles reivindicam desde 1987 suas terras na região. Meses depois uma base da Funai na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, na fronteira do Amazonas com o Peru, foi atacada a tiros por invasores.
Adílio Guató critica o discurso integracionista do novo Governo, que na prática significa “aculturação e perda de identidade”. O presidente já afirmou que a ideia é “proporcionar meios para que os índios (…) se integrem à sociedade”. “O índio quer médico, quer dentista, quer televisão, quer internet. Vamos proporcionar meios para que o índio seja igual a nós”, afirmou o capitão. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, foi além e disse que “índio não quer terra, quer energia elétrica, quer cursar faculdade”. Para o jovem Guató, essa visão é equivocada: “Ainda hoje as pessoas não entendem, falam que temos que evoluir. Mas o que precisamos é arroz, feijão, nossas canoas e arco e flecha pra pescar e caçar e uma terrinha pra plantar mandioca”.
Uma carta aberta enviada por lideranças indígenas para Bolsonaro também critica a estratégia integracionista. “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de Governos e Estado Nacional Brasileiro, por isso vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de Governo e do Estado Nacional Brasileiro”. Mais à frente, o texto fala que “quem não é indígena não pode sugerir ou ditar regras de como devemos nos comportar ou agir em nosso território e em nosso país. Temos capacidade e autonomia para falar por nós mesmos”.
Para o presidente, os povos tradicionais têm terras demais: “Temos uma área maior que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento que vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. Na carta aberta enviada ao capitão, as lideranças indígenas rebateram a afirmação. “Não é verdade que os povos indígenas possuem 15% de terras do território nacional. Na verdade são 13%, sendo que a maior parte (90%) fica na Amazônia Legal. Esse percentual é o que restou como direito sobre a terra que antes era 100% indígena antes do ano de 1500 e que nos foi retirado”.
Do El País